Henri Nicolay Levinspuhl
Publicado originalmente em Henri Nicolay Levinspuhl.
A gradual apostasia dos filhos da luz
18 de outubro de 2024.
O mundo é vicioso desde a perda do Paraíso, e nenhuma política mudará isso. Nos últimos séculos, porém, os perturbadores da ordem instigaram as nações contra as imperfeições inevitáveis da queda, e o empenho pelo caos (hoje eufemisticamente chamado de desconstrução) trocou a ordem imperfeita pela desordem.
Voegelin chamava esse ideal utópico de fé metastática: uma crença doentia e fatal que, em sua pretensão de recriar o paraíso, converteu-se em “uma das grandes fontes de desordem, se não a principal, no mundo contemporâneo”.
Mas apesar dos morticínios e misérias causados pela utopia, seus mentores nunca aprendem a lição. Antes mostram tamanho empenho e perseverança, que raramente topamos, entre os filhos da luz, com um esforço e uma constância rivais. Perante os tolos, os sensatos soam apáticos, e mesmo diante da fonte eterna das ações nobres – ó luz mortiça! E quando a lâmpada do espírito se apaga, cessam as distinções entre tolice e sabedoria.
Pois os apóstatas da luz gradualmente se dobram aos ensinamentos das trevas, e ao mais popular deles: o de que já não seria aceitável chamar a tolice de tola, nem a falsidade de falsa, nem a luxúria de impura, nem mal algum de pecado, como sequer se admite chamar o próprio demônio de demoníaco.
E isso tudo vingou da apatia dos sensatos e da insigne perseverança dos tolos.
Bons e maus leitores
14 de outubro de 2024.
Ignoro se já existiu época poética, mas quando leio Tácito dizer que “ninguém conhece os poetas medíocres, e poucos conheceram os bons”, convenço-me de que os notáveis sempre foram raros, e a insatisfação deles com a indiferença pública denotava um estado de incultura irremediavelmente dominante.
A verdade é que, salvo nos primórdios, quando Deus vira tudo ótimo, não houve tempo sem sobejas imperfeições, dias nos quais os insatisfeitos, alegando presunçosamente consertá-los, transtornavam um mundo já doente.
O remédio dos tolos é pior que a doença. Mas os neoclássicos presumiam sanar a tolice com páginas antigas, e os cientificistas, com o manuscrito da natureza, quando, longe disso, nem moído num pilão o tolo se afasta da insensatez[1] – quer a prova?
Espane a estante, livre do pó o acervo da lucidez e ofereça ao tolo a prata da clarividência. Ainda assim, e entre tantos tesouros, ele achará as escórias que desculpávamos numa obra-prima, mas que, a seu ver, reluzem como as únicas merecedoras de memória. De fato, mesmo os livros excelentes não estão no lugar de Deus, e a história mostrou, nos tolos letrados, os mais renitentes. Pois das leituras não colheram a sensatez que lhes faltava, mas as razões de ver, em seu benfeitor, uma ameaça, e no tirano, um benemérito. Sem sabedoria, os eruditos jamais distinguem, na vida, o que leram nas páginas sensatas. Sem esse eflúvio divino, imaginam acertar a cada erro, e divisam um lampejo na calúnia.
Só quem enxerga não estuda livros quando os lê; pois vê a realidade como o autor sensato a notava. Leitura proveitosa é o encontro dos olhos abertos, os do autor e os do leitor. Mas o cego de espírito está, como dizia Hamann, “lendo as notas sem o texto” – e bons livros são as notas, e a realidade é que é o texto.
[1] Provérbios 27.22.
Amizades terminais
12 de outubro de 2024.
Vivemos custodiados contra as incompreensões. Para declarar um pensamento sem que nos acusem de monstruosidades, precisamos ser argumentadores exímios, negando as fantasias precipitadas contra nossas proposições. Até amigos se separam, quando as ideias se esgueiram entre campos minados. Dos dias das amizades depauperadas por empobrecimento psíquico, chegamos à época quando se acabam com a explosão de escândalos socialmente espalhados no solo do entendimento humano.