11.abril.25
Introdução.
Os vinte textos contidos neste volume são uma humilde contribuição a uma causa que tem despertado muito interesse nos dias atuais, — refiro-me à causa da santidade bíblica. É uma causa que todo aquele que ama a Cristo e deseja promover o Seu reino no mundo deveria esforçar-se para apoiar. Todos podem fazer algo, e desejo acrescentar a minha pequena parte.
O leitor encontrará pouco que seja diretamente controverso nestes textos. Abstive-me cuidadosamente de mencionar mestres modernos e livros modernos. Contentei-me em apresentar o resultado do meu próprio estudo da Bíblia, das minhas meditações particulares, das minhas orações por luz e das minhas leituras dos antigos teólogos. Se em algo ainda estou em erro, espero que me seja mostrado antes que eu deixe este mundo. Todos vemos em parte e temos um tesouro em vasos de barro. Confio que estou disposto a aprender.
Há muitos anos tenho uma profunda convicção de que a santidade prática e a consagração total a Deus não têm sido suficientemente valorizadas pelos cristãos modernos neste país. A política, a controvérsia, o espírito de partido ou o mundanismo têm consumido o coração da piedade viva em muitos de nós. O tema da piedade pessoal caiu tristemente em esquecimento. O padrão de vida tornou-se dolorosamente baixo em muitos lugares. A imensa importância de "ornamentar a doutrina de Deus, nosso Salvador" (Tito 2. 10), tornando-a amável e bela por meio de nossos hábitos e temperamentos diários, tem sido demasiadamente negligenciada. Pessoas mundanas às vezes reclamam, com razão, que pessoas "religiosas", assim chamadas, não são tão amáveis, altruístas e bondosas quanto outras que não fazem profissão de religião. No entanto, a santificação, em seu devido lugar e proporção, é tão importante quanto a justificação. A sã doutrina protestante e evangélica é inútil se não for acompanhada de uma vida santa. É pior do que inútil: causa dano positivo. É desprezada por homens do mundo perspicazes e argutos, como algo irreal e vazio, trazendo desprezo sobre a religião. Tenho a firme impressão de que necessitamos de um avivamento completo acerca da santidade bíblica, e sou profundamente grato por ver que a atenção está sendo dirigida a esse ponto.
Contudo, é de grande importância que todo o assunto seja colocado sobre fundamentos corretos e que o movimento a respeito dele não seja prejudicado por declarações cruas, desproporcionadas e parciais. Se tais declarações se tornarem abundantes, não devemos nos surpreender. Satanás conhece bem o poder da verdadeira santidade e o "imenso" dano que a atenção renovada a ela causará ao seu reino. É de seu interesse, portanto, promover a discórdia e a controvérsia sobre esta parte da verdade de Deus. Assim como no passado ele conseguiu mistificar e confundir a mente dos homens acerca da justificação, ele está trabalhando atualmente para fazer com que os homens "escureçam o conselho com palavras sem conhecimento" sobre a santificação. Que o Senhor o repreenda! Contudo, não posso abandonar a esperança de que o bem será extraído do mal, que a discussão trará à tona a verdade e que a variedade de opiniões nos levará a todos a examinar mais as Escrituras, a orar mais e a nos tornarmos mais diligentes em buscar descobrir qual é "a mente do Espírito".
Agora sinto que é meu dever, ao lançar este volume, oferecer algumas dicas introdutórias àqueles cuja atenção está especialmente voltada para o tema da santificação nos dias atuais. Sei que faço isso correndo o risco de parecer presunçoso e, possivelmente, de causar ofensa. Mas algo deve ser arriscado em favor da verdade de Deus. Portanto, colocarei minhas dicas na forma de perguntas e pedirei aos meus leitores que as recebam como "Advertências para os tempos quanto ao tema da santidade."
(1) Pergunto, em primeiro lugar, se é sensato falar da fé como a única coisa necessária e a única coisa exigida, como muitos parecem fazer hoje em dia ao tratar da doutrina da santificação? — É sensato proclamar de maneira tão crua, nua e sem qualificação, como muitos fazem, que a santidade das pessoas convertidas é apenas pela fé e de forma alguma pelo esforço pessoal? Está de acordo com a proporção da Palavra de Deus? Eu duvido.
Que a fé em Cristo é a raiz de toda santidade — que o primeiro passo para uma vida santa é crer em Cristo — que até crermos não temos um pingo de santidade — que a união com Cristo pela fé é o segredo tanto de começar a ser santo quanto de continuar santo — que a vida que vivemos na carne devemos viver pela fé no Filho de Deus — que a fé purifica o coração — que a fé é a vitória que vence o mundo — que pela fé os antigos obtiveram bom testemunho — todas essas são verdades que nenhum cristão bem instruído jamais pensará em negar. Mas certamente as Escrituras nos ensinam que, ao buscar a santidade, o verdadeiro cristão necessita de esforço pessoal e trabalho, bem como de fé. O mesmo apóstolo que diz em um lugar: "A vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus", diz em outro lugar: "Combato — corro — esmurro o meu corpo"; e em outros lugares: "Purifiquemo-nos — procuremos diligentemente — deixemos todo o embaraço." (Gálatas 2.20; 1 Coríntios 9.26; 2 Coríntios 7.1; Hebreus 4.11; 12.1.) Além disso, as Escrituras em nenhum lugar nos ensinam que a fé nos santifica no mesmo sentido e da mesma maneira que a fé nos justifica! A fé justificadora é uma graça que "não opera", mas simplesmente confia, repousa e se apoia em Cristo. (Romanos 4.5.) A fé santificadora é uma graça cuja própria vida é ação: ela "opera pelo amor" e, como uma mola principal, move todo o homem interior. (Gálatas 5.6.) Afinal, a expressão precisa "santificado pela fé" só é encontrada uma vez no Novo Testamento. O Senhor Jesus disse a Saulo: "Eu te envio para que recebam a remissão dos pecados e herança entre os que são santificados pela fé em Mim." Contudo, mesmo aí, concordo com Alford que "pela fé" pertence a toda a sentença e não deve ser atrelado apenas à palavra "santificados." O verdadeiro sentido é: "para que, pela fé em Mim, recebam remissão dos pecados e herança entre os que são santificados" (Compare Atos 26. 18 com Atos 20. 32.)
Quanto à expressão "santidade pela fé", não a encontro em nenhum lugar do Novo Testamento. Sem dúvida, no que diz respeito à nossa justificação diante de Deus, a fé em Cristo é a única coisa necessária. Todos os que simplesmente creem são justificados. A justiça é imputada "àquele que não trabalha, mas crê" (Romanos 4. 5). É totalmente bíblico e correto dizer que "somente a fé justifica". Mas não é igualmente bíblico e correto dizer que "somente a fé santifica". Essa afirmação exige muitas qualificações. Que um fato baste. Somos frequentemente informados por São Paulo de que um homem é "justificado pela fé sem as obras da lei." Mas em nenhum lugar somos informados de que somos "santificados pela fé sem as obras da lei". Pelo contrário, somos expressamente informados por São Tiago que a fé pela qual somos visivelmente e demonstrativamente justificados perante os homens é uma fé que "se não tiver obras, é morta em si mesma" [1] (Tiago 2. 17). Poderão me dizer, em resposta, que é claro que ninguém pretende desprezar "as obras" como parte essencial de uma vida santa. Seria bom, contudo, tornar isso mais claro do que muitos parecem fazer em nossos dias.
(2) Pergunto, em segundo lugar, se é sensato dar tão pouca importância, como alguns parecem fazer, às muitas exortações práticas à santidade na vida diária que se encontram no Sermão da Montanha e na parte final da maioria das epístolas de São Paulo? Está de acordo com a proporção da Palavra de Deus? Eu duvido.
Que uma vida de consagração diária e comunhão diária com Deus deve ser buscada por todo aquele que professa ser um crente — que devemos nos esforçar para adquirir o hábito de levar ao Senhor Jesus Cristo tudo o que encontramos como fardo, seja grande ou pequeno, e lançá-lo sobre Ele — tudo isso, repito, nenhum filho de Deus bem instruído sonhará em contestar. Mas certamente o Novo Testamento nos ensina que precisamos de algo mais do que generalidades sobre a vida santa, que muitas vezes não ferem a consciência nem causam desconforto. Os detalhes e os ingredientes específicos dos quais a santidade é composta na vida diária devem ser plenamente apresentados e enfatizados a todos os que se propõem a tratar do tema. A verdadeira santidade não consiste apenas em crer e sentir, mas em fazer e suportar, e numa demonstração prática da graça ativa e passiva. Nossas línguas, nossos temperamentos, nossas paixões naturais e inclinações — nossa conduta como pais e filhos, patrões e servos, maridos e esposas, governantes e súditos — nosso modo de vestir, nosso uso do tempo, nosso comportamento nos negócios, nossa atitude na doença e na saúde, na riqueza e na pobreza — tudo, tudo isso são assuntos amplamente tratados pelos escritores inspirados. Eles não se contentam com uma declaração geral do que devemos crer e sentir, e de como devemos ter as raízes da santidade plantadas em nossos corações. Eles vão mais fundo. Eles entram nos detalhes. Eles especificam minuciosamente o que um homem santo deve fazer e ser em sua própria família e junto à sua própria lareira, se permanecer em Cristo. Duvido que esse tipo de ensino esteja sendo suficientemente considerado no movimento dos dias atuais. Quando as pessoas falam de ter recebido "tamanha bênção" e de terem encontrado "a vida superior", após ouvirem algum fervoroso defensor da "santidade pela fé e consagração", enquanto suas famílias e amigos não veem melhora nem aumento da santidade em seus temperamentos e comportamentos diários, um imenso dano é causado à causa de Cristo. A verdadeira santidade, devemos lembrar, não consiste apenas de sensações e impressões interiores. É muito mais do que lágrimas, suspiros, excitação corporal, um pulso acelerado, um sentimento apaixonado de apego aos nossos pregadores favoritos e ao nosso próprio grupo religioso, ou uma prontidão para brigar com todos os que não concordam conosco. Trata-se de algo da "imagem de Cristo", que pode ser visto e observado por outros em nossa vida privada, hábitos, caráter e ações. (Romanos 8.29.)
(3) Pergunto, em terceiro lugar, se é sábio usar uma linguagem vaga sobre perfeição e impor aos cristãos um padrão de santidade, como sendo atingível neste mundo, para o qual não há qualquer garantia a ser mostrada, seja nas Escrituras, seja na experiência? Eu duvido disso.
Que os crentes sejam exortados a "aperfeiçoar a santidade no temor de Deus" — a "seguir para a perfeição" — a "ser perfeitos", nenhum leitor atento de sua Bíblia pensará em negar. (2 Coríntios 7. 1; Hebreus 6. 1; 2 Coríntios 13. 11). Mas ainda preciso aprender que exista uma única passagem na Escritura que ensine que uma perfeição literal, uma completa e total liberdade do pecado, seja em pensamento, palavra ou ação, é atingível, ou tenha sido alguma vez atingida, por qualquer filho de Adão neste mundo. Uma perfeição comparativa, uma perfeição no conhecimento, uma consistência em todas as áreas da vida, uma firmeza completa em cada ponto da doutrina — isso pode ser visto ocasionalmente em alguns dos crentes de Deus. Mas quanto a uma perfeição literal absoluta, os santos mais eminentes de Deus em todas as épocas sempre foram os últimos a reivindicá-la! Pelo contrário, sempre tiveram a mais profunda consciência de sua total indignidade e imperfeição. Quanto mais luz espiritual desfrutaram, mais perceberam seus inúmeros defeitos e falhas. Quanto mais graça receberam, mais foram "revestidos de humildade" (1 Pedro 5. 5).
Que santo pode ser nomeado na Palavra de Deus, cuja vida tenha muitos detalhes registrados, que tenha sido literalmente e absolutamente perfeito? Qual deles, ao escrever sobre si mesmo, falou de se sentir livre da imperfeição? Pelo contrário, homens como Davi, e São Paulo, e São João, declaram na linguagem mais forte que sentem, em seus próprios corações, fraqueza e pecado. Os homens mais santos dos tempos modernos sempre foram notáveis por sua profunda humildade. Já vimos homens mais santos do que o mártir John Bradford, ou Hooker, ou Usher, ou Baxter, ou Rutherford, ou M’Cheyne? E, no entanto, ninguém pode ler os escritos e cartas desses homens sem perceber que se sentiam "devedores à misericórdia e à graça" todos os dias, e a última coisa que reivindicavam era a perfeição!
Diante de fatos como esses, devo protestar contra a linguagem usada em muitos lugares, nestes últimos dias, sobre perfeição. Devo pensar que aqueles que a utilizam ou conhecem muito pouco da natureza do pecado, ou dos atributos de Deus, ou de seus próprios corações, ou da Bíblia, ou do significado das palavras. Quando um cristão professo me diz friamente que já superou hinos como "Tal como estou" e que eles estão abaixo de sua experiência atual, embora o tenham servido quando começou na religião, devo pensar que sua alma está em um estado muito doentio! Quando um homem pode falar com frieza sobre a possibilidade de "viver sem pecado" enquanto está no corpo, e pode realmente dizer que "não teve um mau pensamento por três meses", só posso dizer que, em minha opinião, ele é um cristão muito ignorante! Protesto contra tal ensino. Ele não apenas não faz bem algum, como faz um enorme mal. Desagrada e afasta da religião homens de visão aguçada do mundo, que sabem que isso é incorreto e falso. Deprime alguns dos melhores filhos de Deus, que sentem que nunca poderão atingir "perfeição" desse tipo. Infla muitos irmãos fracos, que imaginam ser algo quando não são nada. Em resumo, é uma ilusão perigosa.
(4) Em quarto lugar, é sábio afirmar de maneira tão positiva e violenta, como muitos fazem, que o capítulo 7 da Epístola aos Romanos não descreve a experiência do santo amadurecido, mas a experiência do homem não regenerado, ou do crente fraco e não estabelecido? Eu duvido disso.
Reconheço plenamente que essa questão tem sido disputada por dezoito séculos, de fato desde os dias de São Paulo. Reconheço plenamente que cristãos eminentes como John e Charles Wesley, e Fletcher, há cem anos, para não mencionar alguns escritores competentes de nosso próprio tempo, sustentam firmemente que São Paulo não estava descrevendo sua própria experiência presente ao escrever esse sétimo capítulo. Reconheço plenamente que muitos não conseguem ver o que eu e muitos outros vemos: ou seja, que Paulo não diz nada nesse capítulo que não corresponda exatamente à experiência registrada dos santos mais eminentes de todas as épocas, e que ele diz várias coisas que nenhum homem não regenerado ou crente fraco jamais pensaria ou poderia dizer. Assim, pelo menos, me parece. Mas não entrarei em uma discussão detalhada do capítulo [2].
O que eu enfatizo é o fato amplo de que os melhores comentaristas de todas as eras da Igreja quase invariavelmente aplicaram o capítulo 7 de Romanos a crentes avançados. Os comentaristas que não adotam essa visão foram, com poucas e brilhantes exceções, os romanistas, os socinianos e os arminianos. Contra eles está reunido o julgamento de quase todos os reformadores, quase todos os puritanos e dos melhores teólogos evangélicos modernos. Dirão, é claro, que nenhum homem é infalível, que os reformadores, puritanos e teólogos modernos a que me refiro podem ter estado totalmente enganados, e que os romanistas, socinianos e arminianos podem estar totalmente certos! Nosso Senhor, sem dúvida, nos ensinou a "não chamar ninguém de mestre". Mas, enquanto não peço que ninguém chame os reformadores e puritanos de "mestres", peço às pessoas que leiam o que eles dizem sobre este assunto e respondam a seus argumentos, se puderem. Isso ainda não foi feito! Dizer, como alguns fazem, que não querem "dogmas" e "doutrinas" humanas não é resposta alguma. A questão toda é: "Qual é o significado de uma passagem da Escritura? Como o capítulo 7 da Epístola aos Romanos deve ser interpretado? Qual é o verdadeiro sentido de suas palavras?" De qualquer forma, lembremo-nos de que existe um grande fato que não pode ser ignorado. De um lado estão as opiniões e interpretações dos reformadores e puritanos, e do outro lado estão as opiniões e interpretações dos romanistas, socinianos e arminianos. Que isso fique claramente entendido.
Diante de um fato como este, devo registrar meu protesto contra a linguagem zombeteira, provocadora e desprezível que tem sido frequentemente usada ultimamente por alguns defensores do que devo chamar de visão arminiana do capítulo 7 de Romanos, ao falarem das opiniões de seus oponentes. Para dizer o mínimo, tal linguagem é imprópria e apenas sabota seu próprio propósito. Uma causa que é defendida com tal linguagem é, merecidamente, suspeita. A verdade não precisa de tais armas. Se não podemos concordar com os homens, não precisamos falar de suas opiniões com descortesia e desprezo. Uma opinião que é apoiada por homens como os melhores reformadores e puritanos pode não convencer todas as mentes no século dezenove, mas, de qualquer forma, seria bom falar dela com respeito.
(5) Em quinto lugar, é sensato usar a linguagem que frequentemente se usa hoje em dia sobre a doutrina de "Cristo em nós"? Eu duvido.
Essa doutrina não é frequentemente exaltada a uma posição que ela não ocupa na Escritura? Receio que sim.
Que o verdadeiro crente é um com Cristo e que Cristo está nele, nenhum leitor cuidadoso do Novo Testamento pensará em negar por um momento. Há, sem dúvida, uma união mística entre Cristo e o crente. Com Ele morremos, com Ele fomos sepultados, com Ele ressuscitamos, com Ele nos assentamos em lugares celestiais. Temos cinco textos claros onde somos distintamente ensinados que Cristo está "em nós" (Romanos 8. 10; Gálatas 2. 20; 4. 19; Efésios 3. 17; Colossenses 3. 11). Mas devemos ter cuidado para entender o que queremos dizer com essa expressão. Que "Cristo habita em nossos corações pela fé" e realiza sua obra interior por meio de Seu Espírito é claro e evidente. Mas se quisermos dizer que, além e acima disso, existe algum misterioso habitar de Cristo no crente, devemos ter cuidado com o que estamos afirmando. Se não tomarmos cuidado, acabaremos ignorando a obra do Espírito Santo. Esqueceremos que, na economia divina da salvação do homem, a eleição é a obra especial de Deus Pai — a expiação, mediação e intercessão, a obra especial de Deus Filho — e a santificação, a obra especial de Deus Espírito Santo. Esqueceremos que nosso Senhor disse, ao ir embora, que enviaria outro Consolador, que "permaneceria conosco" para sempre e, por assim dizer, tomaria Seu lugar (João 14. 16). Em resumo, sob a ideia de que estamos honrando a Cristo, acabaremos por desonrar Seu dom especial e peculiar — o Espírito Santo. Cristo, sem dúvida, como Deus, está em toda parte — em nossos corações, no céu, no lugar onde dois ou três estão reunidos em Seu nome. Mas devemos nos lembrar de que Cristo, como nosso Cabeça ressuscitado e Sumo Sacerdote, está especialmente à direita de Deus intercedendo por nós até que venha pela segunda vez; e que Cristo realiza Sua obra nos corações de Seu povo pela obra especial de Seu Espírito, que Ele prometeu enviar quando deixou o mundo (João 15. 26). Uma comparação entre os versículos 9 e 10 do capítulo 8 de Romanos me parece demonstrar isso claramente. Isso me convence de que "Cristo em nós" significa Cristo em nós "por Seu Espírito." Acima de tudo, as palavras de João são as mais distintas e expressas: "Nisto conhecemos que Ele está em nós: pelo Espírito que nos deu" (1 João 3. 24).
Ao dizer tudo isso, espero que ninguém me interprete mal. Não digo que a expressão "Cristo em nós" seja anti-bíblica. Mas afirmo que vejo um grande perigo em atribuir uma importância extravagante e não bíblica à ideia contida na expressão; e temo que muitos a usem atualmente sem saber exatamente o que querem dizer e, talvez sem querer, desonrem a poderosa obra do Espírito Santo. Se alguns leitores acharem que estou sendo excessivamente escrupuloso quanto a esse ponto, recomendo que leiam um curioso livro de Samuel Rutherford (autor das bem conhecidas cartas), chamado "O Anticristo Espiritual". Verão ali que, há dois séculos, as mais absurdas heresias surgiram de um ensino extravagante justamente dessa doutrina do "habitar de Cristo" nos crentes. Verão que Saltmarsh, Dell, Towne e outros falsos mestres, contra os quais o bom Samuel Rutherford combateu, começaram com noções estranhas de "Cristo em nós" e, em seguida, edificaram sobre essa doutrina o antinomianismo e o fanatismo da pior espécie e da tendência mais vil. Eles sustentavam que a vida pessoal separada do crente havia desaparecido tão completamente que era Cristo quem vivia nele, quem se arrependia, quem cria e quem agia! A raiz desse enorme erro era uma interpretação forçada e não bíblica de textos como "Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim" (Gálatas 2. 20). E o resultado natural disso foi que muitos dos infelizes seguidores dessa escola chegaram à cômoda conclusão de que os crentes não eram responsáveis, independentemente do que fizessem! Os crentes, por assim dizer, estavam mortos e sepultados; somente Cristo vivia neles e assumia tudo por eles! A consequência final foi que alguns pensaram que podiam permanecer numa segurança carnal, visto que sua responsabilidade pessoal havia desaparecido por completo, e podiam cometer qualquer tipo de pecado sem temor! Nunca nos esqueçamos de que a verdade, quando distorcida e exagerada, pode se tornar a mãe das heresias mais perigosas. Ao falarmos que "Cristo está em nós", tomemos o cuidado de explicar o que queremos dizer. Temo que alguns negligenciem isso nos dias atuais.
(6) Em sexto lugar, será sábio traçar uma linha de separação tão profunda, ampla e distinta entre conversão e consagração, ou a chamada vida superior, como muitos fazem hoje em dia? Isso está de acordo com a proporção da Palavra de Deus? Eu duvido.
Indiscutivelmente, não há nada de novo nesse ensino. É bem conhecido que escritores romanos frequentemente sustentam que a Igreja é dividida em três classes — pecadores, penitentes e santos. Os modernos mestres de hoje que nos dizem que os cristãos professos se dividem em três tipos — os não convertidos, os convertidos e os participantes da "vida superior" de completa consagração — parecem-me ocupar terreno muito semelhante! Mas, seja a ideia velha ou nova, romana ou inglesa, sou totalmente incapaz de ver que ela tenha qualquer respaldo nas Escrituras. A Palavra de Deus sempre fala de duas grandes divisões da humanidade, e somente duas. Ela fala dos vivos e dos mortos em pecado — do crente e do descrente — do convertido e do não convertido — dos que viajam pelo caminho estreito e dos que viajam pelo caminho largo — dos sábios e dos tolos — dos filhos de Deus e dos filhos do diabo. Dentro de cada uma dessas duas grandes classes há, sem dúvida, vários níveis de pecado e de graça; mas é apenas a diferença entre o nível mais alto e o mais baixo de um plano inclinado. Entre essas duas grandes classes há um enorme abismo; elas são tão distintas quanto a vida e a morte, a luz e as trevas, o céu e o inferno. Mas sobre uma divisão em três classes, a Palavra de Deus nada diz! Questiono a sabedoria de criar divisões novas que a Bíblia não criou, e detesto totalmente a noção de uma segunda conversão.
Que há uma vasta diferença entre um grau de graça e outro — que a vida espiritual admite crescimento, e que os crentes devem ser continuamente exortados, por todos os motivos, a crescer na graça — tudo isso eu concedo plenamente. Mas a teoria de uma transição repentina e misteriosa de um crente para um estado de bem-aventurança e inteira consagração, com um único e poderoso salto, eu não posso aceitar. Parece-me ser uma invenção humana; e não vejo um único texto claro nas Escrituras que a comprove. Crescimento gradual na graça, crescimento no conhecimento, crescimento na fé, crescimento no amor, crescimento na santidade, crescimento na humildade, crescimento na mente espiritual — tudo isso vejo claramente ensinado e exortado nas Escrituras, e claramente exemplificado nas vidas de muitos santos de Deus. Mas saltos súbitos e instantâneos da conversão para a consagração eu não consigo ver na Bíblia. De fato, duvido que tenhamos qualquer fundamento para dizer que um homem possa ser convertido sem ser consagrado a Deus! Sem dúvida, ele pode ser e será mais consagrado à medida que sua graça aumenta; mas, se ele não foi consagrado a Deus no exato dia em que foi convertido e nasceu de novo, eu não sei o que conversão significa. Não estarão os homens em perigo de subestimar e menosprezar a imensa bem-aventurança da conversão? Não estão, ao instar aos crentes sobre a "vida superior" como uma segunda conversão, diminuindo o comprimento, a largura, a profundidade e a altura daquela grande primeira mudança que a Escritura chama de novo nascimento, nova criação, ressurreição espiritual? Posso estar enganado. Mas às vezes penso, ao ler a linguagem forte usada por muitos acerca da "consagração", nos últimos anos, que aqueles que a utilizam devem ter tido anteriormente uma visão singularmente baixa e inadequada da "conversão", se é que sabiam algo sobre conversão. Em suma, quase suspeitei que, quando foram consagrados, na realidade foram convertidos pela primeira vez!
Confesso francamente que prefiro os velhos caminhos. Penso ser mais sábio e mais seguro exortar todas as pessoas convertidas à possibilidade de crescimento contínuo na graça, e à necessidade absoluta de avançar, aumentando mais e mais, e a cada ano dedicando e consagrando-se mais, em espírito, alma e corpo, a Cristo. Por todos os meios, devemos ensinar que há mais santidade a ser alcançada, e mais do céu a ser desfrutado na terra do que a maioria dos crentes atualmente experimenta. Mas recuso-me a dizer a qualquer homem convertido que ele precisa de uma segunda conversão, e que algum dia poderá dar, com um único e enorme passo, entrada a um estado de inteira consagração. Recuso-me a ensinar isso, porque não vejo qualquer fundamento para tal ensino nas Escrituras. Recuso-me a ensinar isso, porque penso que a tendência dessa doutrina é profundamente perniciosa, deprimindo os humildes e mansos, e inflando perigosamente os superficiais, ignorantes e presunçosos.
(7) Em sétimo e último lugar, é sábio ensinar aos crentes que eles não devem pensar tanto em lutar e combater contra o pecado, mas sim "entregar-se a Deus" e serem passivos nas mãos de Cristo? Isso está de acordo com a proporção da Palavra de Deus? Eu duvido.
É um fato simples que a expressão “apresentai-vos” só é encontrada em um lugar do Novo Testamento, como um dever imposto aos crentes. Esse lugar é no sexto capítulo de Romanos, e ali, em seis versículos, a expressão ocorre cinco vezes. (Veja Romanos 6. 13-19). Mas mesmo ali, a palavra não suporta o sentido de “colocar-se passivamente nas mãos de outro”. Qualquer estudante de grego pode nos dizer que o sentido é, antes, o de ativamente “apresentar-se” para uso, emprego e serviço. (Veja Romanos 12. 1). A expressão, portanto, permanece isolada. Por outro lado, não seria difícil apontar pelo menos vinte e cinco ou trinta passagens distintas nas Epístolas onde os crentes são claramente ensinados a usar esforço pessoal ativo, e são abordados como responsáveis por fazer energicamente o que Cristo quer que façam, e não são instruídos a “apresentar-se” como agentes passivos e permanecer parados, mas sim a levantar-se e trabalhar. Uma violência santa, um conflito, uma guerra, uma luta, a vida de um soldado, uma luta corporal, são descritos como características do verdadeiro cristão. A descrição da “armadura de Deus” no sexto capítulo de Efésios, pode-se pensar, resolve a questão [3].—Além disso, seria fácil mostrar que a doutrina da santificação sem esforço pessoal, apenas por “apresentar-se a Deus”, é exatamente a doutrina dos fanáticos antinomianos do século 17 (aos quais já me referi, descritos no Spiritual Antichrist de Rutherford), e que a tendência disso é extremamente nociva.—Ainda, seria fácil mostrar que essa doutrina é totalmente subversiva de todo o ensino de livros experimentados e aprovados como o O Peregrino, e que, se a aceitarmos, não poderíamos fazer melhor do que lançar o velho livro de Bunyan ao fogo! Se Cristão, em O Peregrino, simplesmente se apresentasse a Deus, e nunca lutasse, ou se esforçasse, ou combatesse, eu teria lido a famosa alegoria em vão. Mas a verdade simples é que os homens persistem em confundir duas coisas diferentes — a justificação e a santificação. Na justificação, a palavra a ser dirigida ao homem é “crer” — somente “crer”; na santificação, a palavra deve ser “vigiar, orar e lutar”. O que Deus separou, não misturemos nem confundamos.
Deixo aqui o assunto da minha introdução e apresso-me para a conclusão. Confesso que ponho de lado minha pena com sentimentos de tristeza e ansiedade. Há muito na atitude dos cristãos professos de hoje que me enche de preocupação e me faz temer pelo futuro.
Há uma incrível ignorância das Escrituras entre muitos, e uma consequente falta de religião sólida e estabelecida. De nenhuma outra maneira posso explicar a facilidade com que as pessoas são, como crianças, “levadas ao redor por todo vento de doutrina” (Efésios 4. 14). Há um amor ateniense pela novidade em circulação, e um gosto mórbido por qualquer coisa velha e regular, nos caminhos trilhados por nossos antepassados. Milhares se aglomerarão para ouvir uma nova voz e uma nova doutrina, sem considerar por um momento se o que estão ouvindo é verdadeiro.—Há um desejo incessante por qualquer ensino que seja sensacional, emocionante e estimulante para os sentimentos.—Há um apetite doentio por um tipo de cristianismo espasmódico e histérico. A vida religiosa de muitos não é muito melhor do que uma embriaguez espiritual, e o “espírito manso e tranquilo” que Pedro recomenda é completamente esquecido (1 Pedro 3. 4). Multidões, gritos, salas abafadas, cantos exaltados e um constante agitar das emoções são as únicas coisas pelas quais muitos se interessam.—A incapacidade de distinguir diferenças doutrinárias está se espalhando amplamente, e enquanto o pregador for “inteligente” e “zeloso”, centenas parecem pensar que está tudo certo, e chamam você de terrivelmente “estreito e sem caridade” se você insinuar que ele é doutrinariamente insustentável. Moody e Haweis, Dean Stanley e Canon Liddon, Mackonochie e Pearsall Smith, todos parecem ser iguais aos olhos de tais pessoas. Tudo isso é triste, muito triste. Mas se, além disso, os verdadeiros defensores de maior santidade começarem a se desentender no caminho e a se incompreenderem, será ainda mais triste. Estaremos, de fato, em uma situação lamentável.
Quanto a mim, estou ciente de que já não sou mais um jovem ministro. Minha mente talvez esteja se tornando rígida, e não consigo facilmente aceitar qualquer nova doutrina. "O velho é melhor." Suponho que pertenço à velha escola da teologia Evangélica, e, portanto, estou satisfeito com o ensino sobre santificação que encontro na Vida da Fé de Sibbes e Manton, e em A Vida, a Caminhada e o Triunfo da Fé de William Romaine. Mas devo expressar a esperança de que meus irmãos mais jovens, que adotaram novas visões sobre a santidade, tenham cuidado para não multiplicar divisões sem causa. Acham eles que é necessário um padrão mais elevado de vida cristã nos dias atuais? Eu também acho. Acham eles que é necessário um ensino mais claro, forte e completo sobre santidade? Eu também acho. Acham eles que Cristo deveria ser mais exaltado como a raiz e o autor da santificação, assim como da justificação? Eu também acho. Acham eles que os crentes deveriam ser cada vez mais exortados a viver pela fé? Eu também acho. Acham eles que uma caminhada muito próxima com Deus deveria ser mais enfatizada para os crentes como o segredo da felicidade e da utilidade? Eu também acho. Em todas essas coisas, estamos de acordo. Mas, se quiserem ir além, então peço que tomem cuidado por onde pisam e expliquem de maneira muito clara e distinta o que querem dizer.
Por fim, devo desaprovar, e o faço com amor, o uso de termos e frases estranhas e de nova invenção no ensino da santificação. Defendo que um movimento em favor da santidade não pode ser promovido por uma terminologia recém-criada, ou por declarações desproporcionais e unilaterais—ou por exagerar e isolar textos particulares—ou por exaltar uma verdade em detrimento de outra—ou por alegorizar e adaptar textos, extraindo deles sentidos que o Espírito Santo nunca lhes atribuiu—ou por falar de modo desprezível e amargo contra aqueles que não veem inteiramente as coisas como nós e não trabalham exatamente do nosso modo. Essas coisas não promovem a paz: ao contrário, repelem muitos e os mantêm à distância. A causa da verdadeira santificação não é ajudada, mas prejudicada, por tais armas. Um movimento em favor da santidade que produz contenda e disputa entre os filhos de Deus é algo suspeito. Por amor de Cristo, e em nome da verdade e da caridade, esforcemo-nos para seguir tanto a paz como a santidade. "O que Deus ajuntou não o separe o homem."
É o desejo do meu coração, e minha oração diária a Deus, que a santidade pessoal aumente grandemente entre os cristãos professos na Inglaterra. Mas confio que todos os que se empenham em promovê-la se apegarão fielmente à proporção das Escrituras, distinguirão cuidadosamente as coisas que diferem, e separarão "o precioso do vil" (Jeremias 15. 19).
~
J. C. Ryle
Holiness.
Notas:
[1] "Há uma dupla justificação por Deus: uma é autoritativa, a outra declarativa ou demonstrativa." — A primeira é o propósito de São Paulo, quando fala da justificação pela fé sem as obras da lei. A segunda é o propósito de São Tiago, quando fala da justificação pelas obras." — T. Goodwin em Santidade do Evangelho. Obras, vol. 7, p. 181.
[2] Aqueles que se interessarem pelo assunto encontrarão uma discussão completa nos Comentários de Willet, Elton, Chalmers e Haldane, e em Owen sobre o Pecado Habitante, e na obra de Stafford sobre o capítulo 7 de Romanos.
[3] O antigo sermão de Sibbes sobre a "Violência Vitoriosa" merece a atenção de todos os que possuem suas obras. — Vol. 7, p. 30.