Adolf Schlatter (1852-1938), nascido em 1852 na cidade suíça de St. Gallen, despontou como um dos teólogos protestantes mais influentes de sua época, especialmente por seu trabalho no campo do Novo Testamento e da teologia sistemática. Formado entre as universidades de Basileia e Tübingen, iniciou sua trajetória acadêmica num ambiente amplamente dominado pelo liberalismo teológico, o que tornou o início de sua carreira um verdadeiro desafio. Sua determinação e rigor intelectual, no entanto, logo o destacariam, conduzindo-o a uma posição de destaque entre os estudiosos da Escritura. Schlatter publicou mais de quatrocentas obras, tanto acadêmicas quanto acessíveis ao público em geral, e conquistou reconhecimento duradouro, a ponto de ser equiparado, ainda que conservador, a nomes como Baur, Wrede e Bultmann.
Após um processo de habilitação extremamente exigente na Universidade de Berna, marcado por resistência institucional e rigor incomum — inclusive com a imposição de exames em cinco disciplinas e oito dissertações supervisionadas — Schlatter obteve o direito de lecionar, alcançando a nota máxima, um feito não igualado nas décadas seguintes. Em 1888, iniciou sua docência naquela mesma universidade, antes de assumir cátedras em Greifswald, Berlim e, finalmente, Tübingen, onde permaneceria até o fim de sua vida em 1938.
Durante sua permanência em Berlim, Schlatter se tornou uma espécie de contraponto acadêmico a Adolf von Harnack, com quem manteve uma relação respeitosa, ainda que divergente. Sua crítica à teologia idealista e ao liberalismo reinante não apenas lhe angariou notoriedade, mas também tensões com colegas, especialmente após sua participação em uma convenção protestante em 1895, onde denunciou o domínio ideológico liberal nas faculdades de teologia. Confrontado com a indignação de seus pares, não hesitou em declarar sua lealdade à comunidade de fé acima da academia, reiterando que, para ele, a igreja tinha primazia sobre a erudição.
A marca de sua teologia esteve sempre em uma leitura do Novo Testamento profundamente enraizada na realidade, avessa a abstrações filosóficas e comprometida com a manifestação concreta de Deus em Cristo. Sua linguagem acessível ampliou o alcance de suas obras e inspirou uma geração de estudantes que se sentia sufocada por um ambiente intelectual cada vez mais cético quanto ao sobrenatural. Um desses jovens, Dietrich Bonhoeffer, seria profundamente influenciado por sua visão da autoridade das Escrituras, afastando-se da tendência de ver a Bíblia como mero repositório de ideias religiosas.
A relação de Schlatter com o regime nazista, contudo, permanece até hoje objeto de intensas discussões. Ainda que tenha sido um dos poucos teólogos a criticar abertamente o governo de Hitler, suas posições quanto aos judeus, sobretudo em escritos como Wird der Jude über uns siegen?, revelam uma retórica preocupante. Sua estratégia, segundo estudiosos como Stephen Haynes, consistia em uma inversão simbólica, na qual os nazistas eram identificados com características “judaicas”, uma tentativa de deslegitimar o regime mediante categorias já marcadas pelo preconceito.
Aos mais de oitenta anos, Schlatter ainda demonstrava energia intelectual, como se vê em sua obra Gottes Gerechtigkeit, um comentário de peso sobre a Epístola aos Romanos. Contudo, sua recusa em assinar a Declaração de Barmen e sua adesão, ainda que ambígua, a certos aspectos da ideologia dos Cristãos Alemães — como sua declaração de gratidão a Deus por haver dado ao povo alemão Adolf Hitler como “salvador da aflição” — lançam sombras sobre sua atuação pública nos últimos anos de vida. Sua justificativa para apoiar o parágrafo ariano, que excluía pastores de origem judaica, revela uma tensão entre sua lealdade à fé e ao povo: para ele, naquele contexto, a comunhão com os compatriotas era mais urgente do que com os cristãos judeus.
Mesmo assim, Schlatter não incitou a violência contra os judeus, nem aprovou os extremos do antissemitismo nazista. Sua crítica ao regime — ainda que permeada por contradições — foi mais explícita que a de muitos de seus colegas liberais. Sua proximidade com Gerhard Kittel, cuja produção antissemita se tornaria motivo de escândalo no pós-guerra, levanta ainda mais questões sobre os limites e implicações de sua atuação teológica nesse período conturbado.
Bonhoeffer, embora inicialmente influenciado por Schlatter, rompeu com ele após a dura crítica deste ao rascunho da Confissão de Betel. Schlatter via naquela formulação uma ruptura indevida com a identidade alemã da igreja. Seu panfleto Die neue deutsche Art in der Kirche representou essa posição, sendo duramente criticado por Bonhoeffer, que via tais atitudes como desvios teológicos alimentados por nacionalismo excessivo. Ainda assim, a contribuição de Schlatter à teologia bíblica e sua ênfase na autoridade das Escrituras permaneceriam como elementos fundamentais na formação de muitos pensadores posteriores.
A complexidade da figura de Adolf Schlatter reside, justamente, na tensão entre seu vigor teológico e sua ambivalência política. Intelectualmente brilhante, fiel às Escrituras e ousado em um ambiente hostil ao sobrenatural, ele também carregou consigo os limites de seu tempo — e de sua própria perspectiva sobre o lugar de Israel e da igreja na história.