Entre a solidão e a saudade.
14 de abril de 2025.
Qual a diferença entre a solidão e a saudade?
À primeira vista, parecem caminhar de mãos dadas, como sombras que se projetam sobre a ausência. Mas, se olharmos com mais cuidado, perceberemos que há uma distância sutil — quase imperceptível — entre uma e outra.
A solidão, em muitos casos, é uma escolha. Ainda que nem sempre consciente, há momentos em que nos retiramos do mundo, silenciosamente, em busca de um espaço interior. Pode ser um tempo de recolhimento, uma pausa para respirar, ou até um abrigo contra os ruídos do cotidiano. A solidão, nesses moldes, tem algo de sagrado — um silêncio habitado que pode ensinar, amadurecer e até curar.
A saudade, por outro lado, vem sem ser convidada. Surge como uma visita inesperada, às vezes doce, às vezes amarga. É o eco de uma presença que já foi real. Ela nasce do encontro — e, por isso mesmo, só sente saudade quem um dia amou, compartilhou, viveu algo que agora está ausente. A saudade é, nesse sentido, a memória afetiva daquilo que foi pleno.
Ambas, portanto, têm algo em comum: revelam a ausência.
A solidão revela a ausência de companhia, de compreensão, de proximidade. A saudade revela a ausência de um vínculo específico — alguém, um lugar, um tempo — que, por ter sido tão significativo, agora faz falta.
E aqui começa o paradoxo: a solidão, por vezes, nos leva à saudade. E a saudade, quando profunda, pode nos conduzir à solidão. Uma retroalimentação da alma, em que o coração se vê perdido entre o que falta e o que foi perdido.
Contudo, há um detalhe importante que costuma passar despercebido: a solidão pode ser povoada. A saudade, por mais dolorosa que seja, é sempre uma marca de amor. Ela aponta para o fato de que somos feitos para o encontro. Que o outro é parte essencial de quem somos.
A fé cristã nos ensina que não fomos criados para a solidão. No fundo do coração humano, há um desejo irreprimível de comunhão — com o outro, consigo mesmo e, sobretudo, com Deus. A solidão que fere é aquela que esquece essa verdade: que não estamos — nem fomos — feitos para viver isolados. Já a saudade é a ferida da lembrança, a falta que prova que o amor existiu.
É verdade que, em certos momentos, esse sentimento nos desgasta. A saudade pode gerar ansiedade, medo, até desespero. Mas ela também pode se transformar em esperança. Afinal, só sentimos falta daquilo que marcou profundamente nossa existência. E há algo profundamente belo nisso.
Um escultor não sente saudade da pedra bruta — mas sim da forma que ali descobriu. O amor não sente saudade da ausência em si, mas da presença que um dia preencheu. E se essa presença permanece viva na memória, então talvez ela nunca tenha partido por completo.
Se sabemos que aquilo ou aquele por quem sentimos saudade ainda está — em algum lugar, de algum modo — a espera se torna menos dolorosa. Surge então a confiança, que é o nome que damos à saudade que aprendeu a esperar. E a fé é, por excelência, a saudade voltada para o eterno. É o coração que, mesmo em meio à noite, confia que o dia há de vir.
Mas... e se for a solidão que nos conduz à saudade?
E se aquilo que nos falta não for alguém real, mas um sentido, um propósito, um horizonte?
Talvez estejamos falando de algo mais profundo. Daquela solidão existencial que só é preenchida quando nos reconhecemos criados, conhecidos, amados. Quando percebemos que, no mais íntimo de nossa carência, há um clamor por algo que transcende este mundo. Algo — ou Alguém — que nunca esteve ausente.
No fim, entre a solidão e a saudade há uma linha tênue: ambas são lembranças de que fomos feitos para amar e ser amados. Para estar com. Para caminhar juntos. E, quando isso nos é tirado, o coração se inquieta.
Mas essa inquietação, se bem orientada, pode nos conduzir à verdade. À certeza de que nem a solidão é definitiva, nem a saudade é inútil. Ambas podem ser degraus para algo maior. E talvez, no coração de Deus, nenhuma ausência seja eterna.
O mundo entre mim e Deus.
09 de março de 2025.
Às vezes, no intervalo entre um pensamento e outro, contemplo o mundo. E ele me parece desabar — não com a violência de um colapso, mas com a fragilidade de algo que sempre esteve se partindo. Olho e me lembro: estou nele, sou parte dele, e respiro de seus problemas. Talvez até os aumente.
Talvez, sem perceber, meu desajuste contribua para o desalinho do todo.
O mundo, para mim, nunca foi um lugar atraente. Mas viver nele é inevitável. E isso basta para que o risco da queda esteja sempre presente. A queda de Adão, afinal, é reeditada todos os dias em cada escolha, em cada pensamento. E assim, aquele mundo que parecia distante, externo, tornou-se parte de mim. E eu, parte dele.
Dizer que o mundo é um problema talvez seja pouco. Ele é uma série de conflitos justapostos, uma confusão de valores e sentidos. E, ainda assim, continuamos chamando esse lugar confuso de “o mundão de Deus”.
Mas... é mesmo de Deus?
Minha fé sempre me sussurrou que o mundo pode ser salvo. Que há beleza escondida, bondade latente, justiça por florescer. Mas me pergunto até onde é possível ir sem que o salvador se torne cúmplice daquilo que desejava corrigir. Há quem, ao tentar consertar o mundo, se perca nele, esquecendo-se do próprio eixo. Submetem-se a humilhações, distorcem princípios, e acabam ridicularizando o que diziam amar.
E é aí que me vejo: um homem comum, fraco. Reconheço que sou falho — às vezes incapaz até de resistir ao que me repugna. Tento respeitar as diferenças, mas confesso: é difícil quando elas ameaçam aquilo que considero verdadeiro. Difícil quando moldam o futuro em bases tão frágeis. Esquecemos, com frequência, que os frutos de hoje germinarão só depois de muito tempo — e, com sorte, amanhã.
Então, o que precisa mudar: o mundo... ou eu?
Provavelmente, eu.
Kierkegaard, filósofo da interioridade, escreveu que o maior desespero do homem é não querer ser o que se é diante de Deus. E talvez esse seja o ponto mais duro de encarar: não é o mundo que me afasta de Deus, sou eu mesmo que resisto à minha própria salvação. Tento encontrar abrigo em causas, em teorias, em reformas — quando o único abrigo verdadeiro está em ser transparente diante d’Aquele que me conhece por inteiro.
Eu conheço os limites do amor humano. Conheço sua tendência à deformação, à vaidade disfarçada de entrega. Já o amor de Deus, esse não muda. É um amor eterno, que não aumenta nem diminui — porque não depende de quem sou, mas de quem Ele é. Deus não amou mais o mundo quando enviou seu Filho. Ele continua nos amando com a mesma intensidade, com o mesmo sacrifício, com a mesma compaixão.
Eu sei que não posso mudar o mundo. E, se sou honesto, admito que tampouco consigo mudar a mim mesmo de forma duradoura. Meu coração é inconstante. Minha vontade vacila. Minhas certezas se esfriam.
Mas se eu não posso me mudar, quem pode?
Deus.
Ele não apenas pode — Ele deseja. Kierkegaard chamaria isso de o “salto da fé”: quando, sem garantias humanas, sem provas tangíveis, lançamos nosso ser inteiro nas mãos de Deus. E esse salto não é fácil. Exige que deixemos para trás a ilusão de controle, a ideia de que nos bastamos.
O mundo seguirá como é. Talvez caindo, talvez se refazendo em pequenas partes. Mas eu posso ser refeito. E se não posso reformar o mundo inteiro, posso ao menos ser um reflexo de outra realidade — uma que não se abala com o tempo, nem com os ventos deste século.
Deus continua amando. E isso é mais do que suficiente para recomeçar.
Sobre vazio e direção.
20 de fevereiro de 2025.
Era noite quando um homem solitário caminhava pela estrada. Não sabia aonde ia, tampouco por que caminhava. Levava consigo apenas as roupas do corpo e uma tristeza antiga, dessas que não têm nome, mas que pesam como se tivessem séculos. A estrada não oferecia direção; oferecia apenas o silêncio e a incerteza. Ao lado, um trem cortava a noite com lentidão incomum, como se o próprio tempo tivesse decidido desacelerar, fazer uma pausa e observar.
A chuva veio em seguida — não violenta, mas insistente. O andarilho, já exausto, não teve para onde correr. Seus pés logo encharcaram, suas roupas se colaram ao corpo, e cada passo se tornou mais arrastado. As poças deixaram de ser desviadas; tornaram-se parte do caminho. Mesmo assim, ele continuava, como quem caminha não para chegar, mas porque parar é ainda mais doloroso.
Lá no alto, uma coruja observava tudo. Sua presença não era ameaça, nem auxílio — apenas um testemunho silencioso do que acontecia abaixo. Um carro antigo passou lentamente na contramão, seus faróis despertando o homem por um momento. Mas logo seguiu adiante, indiferente, como a maior parte das coisas na vida dele.
A chuva, em sua monotonia, lavava mais do que o corpo. Trazia à tona uma estranha alegria, quase infantil, que o homem já não sabia expressar. Era uma alegria pequena, tímida — o tipo de alegria que vem não porque tudo está bem, mas porque, por instantes, a dor parece mais leve.
Esse homem, perdido em seus próprios passos, não conhecia teorias sobre o tempo, nem as palavras de Einstein, que dizia que o tempo é relativo. Para ele, o tempo era apenas um fardo, uma sucessão de horas que não levavam a lugar algum. "Caminhar pra esquecer ou caminhar pra chegar?" — perguntava-se, mas sem esperar resposta. O que realmente queria esquecer era de si mesmo. Queria deixar para trás aquele que era, e talvez até aquilo que nunca conseguiu ser.
Santo Agostinho, séculos atrás, escreveu: “Fizeste-nos para Ti, ó Deus, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti.” Esse homem, sem sabê-lo, era a imagem viva dessa inquietação. Vagava não por falta de estrada, mas por falta de direção interior. Procurava algo — um sentido, talvez um fim —, mas o procurava onde nunca encontraria: dentro do próprio vazio, entre os passos sem rumo.
Há, nesse quadro, uma alegoria profunda.
O trem, constante e firme, segue por trilhos definidos. Ele tem um destino. Nele, pessoas dormem, leem, esperam. Passam pela mesma paisagem que o homem percorre a pé, mas de um modo diferente. Elas não lutam contra a chuva, não desviam de poças, não tropeçam em pedras. Elas escolheram um caminho, uma condução. E o mais curioso é que o trem sempre esteve ali, ao lado do andarilho. Mas ele nunca o tomou.
Talvez por orgulho. Talvez por medo. Talvez por uma ilusão de liberdade.
E aqui emerge o coração da reflexão: há momentos em que caminhar sem rumo pode parecer libertador — uma forma de negar o sistema, o controle, as normas. Mas chega um ponto em que o vagar se transforma em prisão. Quando tudo é deserto, mesmo a chuva vira miragem. E quando tudo é tristeza, até a beleza se torna dor.
A estrada do homem é o símbolo de uma alma inquieta, ferida, orgulhosa — que prefere vagar a confiar. O trem, por sua vez, é mais do que um veículo. É uma metáfora da graça, da direção, do propósito. É o caminho preparado, mas que só pode ser acessado por quem aceita não controlar tudo.
Talvez, no fim, a maior tragédia não seja a tristeza de quem anda na chuva, mas a tristeza de quem recusa a salvação que sempre esteve ao seu lado. E quando, enfim, o homem perceber que o trem levava para onde ele tanto buscava ir — quando enfim reconhecer que havia um caminho seguro, e que não era preciso sofrer tanto —, talvez já seja tarde. Talvez seja o último horário disponível. E, com ele perdido, restará apenas o amargo gosto do arrependimento.
Santo Agostinho teria dito a esse homem: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei...”
Pois há dores que nascem não do abandono, mas da recusa em ser encontrado.
E ao fim da crônica, resta apenas uma pergunta, sussurrada como um eco no escuro:
Para onde vai o trem, e para onde vai o homem?
A resposta depende de uma decisão simples, mas profunda: se o homem desejar chegar.
Entre o deserto e a imaginação: sobre o mal e suas máscaras.
10 de janeiro de 2025.
O deserto, por um instante, parecia um lugar feliz. Após a tempestade, o céu se abriu e o vento se aquietou. Os camelos — criaturas resilientes por natureza — davam sinais de alívio. Ainda havia uma longa jornada até a distante vila de Al-Kareem, um oásis quase lendário. Mas naquele momento, a sede parecia um problema distante, e a esperança caminhava entre os homens do grupo como uma visitante inesperada. Os legionários, mesmo desorientados pelas falhas da bússola sob forte interferência magnética, confiavam na experiência de um deles, que dizia já ter cruzado o Saara. O fato de isso ter acontecido quando ele ainda era bebê não parecia, curiosamente, um empecilho à sua autoridade.
Mas o deserto também tem seus próprios argumentos.
A tempestade passou, mas deixou feridas. A areia, que por um momento parecia purificadora, revelou sua face implacável: feridas abertas, lábios rachados, olhos ardendo. Al-Kareem, antes destino, tornara-se mito. E os homens, outrora legionários altivos, choravam como crianças — inclusive o tal “experiente”, que agora batia recordes de desespero. O deserto mostrava que, às vezes, o mal não chega em forma de monstros, mas de cansaço, desorientação e silêncio absoluto.
Diante disso, ressurge uma pergunta antiga: por que existe o mal?
Gottfried Leibniz, filósofo do otimismo racional, sustentava que vivemos no melhor dos mundos possíveis. O mal, dizia ele, é um preço inevitável para que a liberdade, a ordem e a beleza do todo existam. Mas é fácil acreditar nisso de dentro de uma biblioteca, e muito mais difícil quando se tem areia entre os dentes e a morte no horizonte.
É aí que entra Dostoiévski, com sua voz de angústia. Em Os Irmãos Karamázov, o personagem Ivan rejeita um mundo onde a felicidade dos muitos se constrói sobre a dor injusta de uma única criança. Para ele, nenhuma harmonia futura pode justificar a lágrima de um inocente. O mal, em sua visão, é um escândalo, uma rachadura no tecido da realidade que não pode ser remendada com teodiceias.
Voltemos então à infância.
Gabriel era um menino de sete anos. Costumava jogar bola num bairro isolado, rodeado por grades e esquecimentos. Não tinha brinquedos, tampouco amigos. O que possuía era algo menos visível, porém mais precioso: uma imaginação fértil, quase delirante. Inventava histórias, criava mundos, e neles encontrava tudo o que lhe faltava. Quanto menos tinha, mais era capaz de imaginar. Os outros meninos não o excluíam por crueldade, mas por desconhecimento — não sabiam como lidar com alguém que transformava ausência em fantasia.
Gabriel vivia em um bairro como tantos outros: nem o pior, nem o melhor. Apenas esquecido. O sofrimento ali não era cinematográfico, mas cotidiano. E ainda assim, ele encontrava beleza onde os adultos só viam ruína.
Aqui está a ironia: o mesmo Gabriel cresceu. Tornou-se um dos homens no deserto. Carrega consigo as mesmas ferramentas — imaginação, resistência, um certo silêncio interior — mas agora enfrenta um mundo mais hostil. O mal, que antes visitava seus sonhos como sombra, agora o acompanha em forma de sede, exaustão e abandono. E, mesmo assim, ele caminha.
A experiência do mal, afinal, é inescapável. Mas a forma como lidamos com ele define aquilo que somos. Podemos negá-lo, racionalizá-lo, como fez Leibniz. Podemos gritar contra ele, como Ivan Karamázov. Ou podemos, como Gabriel, sobreviver a ele com os olhos ainda capazes de enxergar beleza — mesmo que com esforço, mesmo que com lágrimas.
É possível que Al-Kareem não exista. Ou que exista, mas nunca seja alcançado. Talvez a verdadeira vila, o verdadeiro oásis, não esteja no final da jornada, mas na maneira como cada um percorre o seu deserto.
No fim, a questão não é apenas “por que existe o mal?”, mas: o que fazemos quando ele nos encontra?
A resposta — seja filosófica, poética ou vivida — nunca será simples. Mas talvez seja nisso que reside a dignidade de continuar caminhando.
O valor em circulação.
18 de dezembro de 2024.
Certa vez, fui ao mercado. Não era uma dessas idas por impulso, sem propósito definido. Era uma das vezes certas — aquelas em que buscamos o essencial, o que está ao nosso alcance. Curiosamente, é nessas ocasiões aparentemente banais que se escondem reflexões valiosas. Com frequência, subestimamos aquilo que carregamos nas mãos, ignorando a história que cada objeto, cada gesto, pode carregar.
Pense, por exemplo, em uma nota de cem reais. Quando a retiramos do banco e a guardamos na carteira, raramente nos damos conta da trajetória que ela percorreu até ali. Talvez ela já tenha passado pelas mãos de um traficante. Mas antes disso, veio de um jovem mimado que a recebeu do pai — um homem honesto e trabalhador. Esse pai, por sua vez, a ganhou de seu chefe, que só a tinha em mãos porque sua esposa, avessa a dinheiro em espécie, preferia usar cartões. Essa esposa havia conseguido a nota numa festa beneficente, embora o valor devesse ter sido destinado a uma entidade de caridade — algo que o doador original jamais soube.
Esse doador, um pizzaiolo humilde, entregou o dinheiro com generosidade genuína. Curiosamente, ele recebeu a nota de um senhor de olhar brilhante e alma cansada, que a encontrou caída na rua. Sem luxo ou moradia, aquele homem mal tinha onde descansar a cabeça, mas encontrou dignidade suficiente para trocá-la por comida para sua família, que vivia debaixo de uma ponte. E, por um instante, até a ponte pareceu sorrir. A nota havia chegado até ele levada pelo vento — um sopro do sudeste que passou pelos prédios do centro da cidade.
Lá em cima, um jovem recém-enriquecido pela loteria decidira esbanjar. Jogar dinheiro ao vento lhe pareceu divertido — e, por um instante, talvez tenha sido. Mas a extravagância virou compulsão. Comprou uma empresa, faliu. O dinheiro retornou ao banco. Entre papéis e transações, passou pelas mãos de uma senhora idosa que, com muito esforço, juntara moedas para presentear o neto com uma quantia simbólica. Trocou os trocados por uma nota mais prática — justo a mesma que, em algum momento, chegou ao caixa do mercado que eu visitava.
É curioso pensar naquilo que circula entre nós. Moedas, notas, bens. Mas e se em vez de bens materiais, fossem sentimentos? E se, ao sacar uma quantia, retirássemos raiva, violência ou egoísmo? Eles também circulariam. Passariam de mão em mão, gerando efeitos — mas ao contrário do dinheiro, seus resultados seriam corrosivos, deixando um rastro de vazio.
Agora, imagine o contrário: e se o que circulasse fosse o amor? Se, em vez de ódio, entregássemos carinho? Se no lugar da indiferença, déssemos compaixão? E se, ao final de uma compra qualquer, alguém perguntasse: “Aceita o troco em balas de ternura?” Alguma coisa boa certamente sobraria — e se espalharia.
Às vezes, é preciso repensar os valores. Valorizar o que temos de melhor é garantir que, ao entrar em circulação, esse “capital afetivo” gere transformações verdadeiras. Porque certas riquezas não se acumulam — se multiplicam.
E se há um exemplo supremo desse amor em movimento, ele está em Deus. Ele nos amou primeiro. Deu o que tinha de mais precioso: seu Filho, Jesus, para nos resgatar. Um ato de entrega tão profundo que continua, dois milênios depois, a tocar corações e transformar vidas. Esse amor não passa. Não envelhece. Continua circulando.
Deus apenas pede que, se O amamos de verdade, continuemos espalhando esse sentimento — pois entre todos os valores, esse é, de fato, o único inestimável.
A misericórdia tem limites?
23 de outubro de 2024.
Sejamos diretos.
A pergunta, à primeira vista, pode parecer tola: a misericórdia de Deus tem limite? É possível viver uma vida de excessos, tropeços e reincidências, confiando que, ao final de cada dia, um pedido de perdão sincero seja suficiente para encerrar o expediente da alma como quem bate o ponto?
Vivemos tempos onde o atalho se tornou regra. Em tudo — no trabalho, nos relacionamentos, nas opiniões e até na espiritualidade — há uma tendência a buscar o caminho mais fácil, mais rápido, mais confortável. E por que seria diferente quando se trata do perdão divino? Afinal, se Deus é amor, se sua misericórdia é infinita, então por que não pecar hoje e arrepender-se amanhã?
Essa forma de pensar, embora comum, revela algo profundamente equivocado. Ela trata o pecado como rotina e o perdão como protocolo. Mas há uma diferença fundamental entre a misericórdia de Deus e a indulgência da mente humana. O perdão não é uma engrenagem automática acionada por palavras repetidas; ele é um gesto divino que responde a um coração contrito, verdadeiramente tocado pela consciência da culpa.
É verdade que Deus perdoa. Essa é a boa nova do Evangelho. Cristo morreu por pecadores, e não há queda que esteja fora do alcance de sua graça. Mas é justamente por isso que o arrependimento não pode ser banalizado. Porque custou caro. Porque houve sangue. Porque houve cruz.
A misericórdia não é uma desculpa para o pecado, mas uma ponte para a transformação. O coração que entende a profundidade do perdão é o mesmo que treme diante da possibilidade de ferir, mais uma vez, o Amor que o resgatou.
Quando priorizamos a facilidade do perdão em vez da gravidade do pecado, revelamos nossas verdadeiras prioridades. Ainda que confessemos amor por Cristo, é possível que nosso coração esteja, na prática, mais inclinado ao conforto que o pecado oferece do que ao esforço da fidelidade. O arrependimento se torna, então, uma estratégia — e não uma conversão.
Talvez devamos fazer uma pausa e inverter a lógica. Em vez de perguntar quantas vezes posso cair e ser levantado?, deveríamos perguntar: por que continuo caindo, se já fui levantado? Isso muda tudo.
A fé verdadeira não é um contrato jurídico com cláusulas de perdão ilimitado. Ela é um compromisso com o Amor. E onde há amor, há desejo de fidelidade. Quando alguém ama de verdade, não quer simplesmente ser perdoado — quer parar de ferir.
É claro que somos frágeis. É certo que ainda tropeçamos. Mas a fragilidade não deve ser escudo para a irresponsabilidade. A graça não elimina o esforço; ela o inspira. O perdão não invalida a luta; ele a torna possível.
Diante disso, temos uma escolha. Uma decisão simples, mas decisiva:
Posso viver pecando, contando com a misericórdia ao final do dia.
Ou posso viver com a misericórdia como ponto de partida, buscando com sinceridade não mais pecar.
Sim, aqui, a ordem altera o produto. Pois uma vida orientada pela certeza da graça não é uma vida relaxada — é uma vida transformada. E aquele que conheceu a verdade não encontra mais consolo na escuridão. Ainda que caia, ele deseja levantar-se. Ainda que peque, deseja mudar. Ainda que seja falho, deseja ser fiel.
A misericórdia de Deus não tem limite. Mas ela tem direção. Ela vem do alto para nos levantar — não para nos manter de joelhos diante dos mesmos erros.
Sobre ser criança.
16 de setembro de 2024.
Creio que a maior das ofensas que podemos dirigir a alguém é chamá-lo de criança. Para um adulto, essa palavra carrega um peso de desprezo, insinuando que a mente é ainda imatura e não plenamente desenvolvida. Dostoiévski, em sua obra-prima Os Irmãos Karamazov, parece ter captado esta nuance com notável profundidade. Embora o autor russo tenha se mantido firme contra o socialismo durante toda a sua vida, muitos tentam agora, após sua morte, reescrever sua história para encaixá-lo em seus próprios moldes ideológicos. É inegável, porém, que Dostoiévski defendia com brilhantismo suas ideias, mesmo quando estas eram amplamente rejeitadas. Em Os Demônios, ele critica gerações intelectuais fracas como responsáveis pelas consequências do socialismo. No entanto, em sua obra final, ele opta por uma expressão ainda mais incisiva: a de uma criança.
Este conceito é personificado no jovem Kólia, cuja ingenuidade o leva a buscar soluções sociais simplistas sem a devida compreensão do mundo. Diferentemente de Ivan Karamazov, cujas complexas e por vezes desesperadas ideias o conduzem à loucura, Kólia representa o socialista típico: indignado com os problemas, mas desprovido de uma análise profunda. A imaturidade não é apenas um estágio de desenvolvimento natural; quando perpetuada na idade adulta, torna-se um obstáculo à racionalidade, moldando uma visão do mundo baseada em sentimentos e pensamentos estagnados.
Aqui, no entanto, não estamos apenas considerando a imaturidade em si, mas também a maneira de abordá-la. Aliosha Karamazov, ao interagir com Kólia, não apenas desafiou suas ideias com perguntas retóricas, mas também buscou guiá-lo ao caminho da sabedoria, similar ao que Dallas Willard descreve em Gentileza que cativa. Essa abordagem gentil mostrou-se mais eficaz do que qualquer debate apologético ou crítica ao socialismo, oferecendo a Kólia uma orientação que seu estado mental ainda não podia abarcar.
No entanto, o exemplo mais profundo sobre como lidar com a imaturidade e as disputas pode ser encontrado no Evangelho de Lucas, capítulo 9, versículos 46 a 48. Quando os discípulos discutiam entre si sobre quem seria o maior, Jesus não se envolveu na disputa com argumentos racionais ou reprovações, mas, ao contrário, usou a simplicidade para ensinar. Ele colocou uma criança no meio deles e declarou que "quem receber esta criança em meu nome, a mim me recebe". Com isso, Jesus revelou que a verdadeira grandeza está na humildade e na simplicidade, não na autoridade ou na competência intelectual. Ele não exigiu dos discípulos um conhecimento profundo ou uma sabedoria madura antes de ensiná-los, mas os instruiu a receber o ensino com a mente e o coração abertos, como uma criança.
A lição final que Jesus nos deixa é que, ao lidarmos com a imaturidade, seja de ideias ou de pessoas, devemos adotar uma postura de humildade e paciência. Em vez de confrontar com argumentos pesados ou críticas severas, devemos nos aproximar com gentileza, oferecendo uma orientação que respeite o estágio de desenvolvimento do outro. A verdadeira sabedoria se manifesta na capacidade de receber e ensinar com simplicidade e amor, ajudando a iluminar o caminho de forma que todos possam crescer e aprender. É na humildade e na gentileza, portanto, que encontramos o verdadeiro poder de transformar e guiar, refletindo o exemplo perfeito de Jesus.
Melanchthon no cinema: entre o protagonismo de Lutero e o brilho discreto do reformador.
10 de agosto de 2024.
Quando se trata de retratar a Reforma Protestante no cinema, o nome que inevitavelmente domina as telas é Martinho Lutero. No entanto, figuras igualmente importantes, como Philipp Melanchthon, aparecem frequentemente à sombra do grande reformador. Esta dinâmica é explorada em produções cinematográficas que, apesar de suas intenções, acabam reforçando a ideia de que "grandes homens fazem a história sozinhos", conforme apontado por Wipfler (2017).
Os primeiros filmes nos Estados Unidos foram obra de protestantes, como observa Espinosa (2023). Essas produções focaram, entre outras temáticas diversas, em figuras centrais da Reforma como Lutero, relegando Melanchthon a um papel coadjuvante. Mesmo sendo um dos principais intelectuais do movimento, sua presença no cinema é discreta e raramente ganha o destaque merecido.
Dois filmes se destacam ao tentar retratar a vida e os feitos de Lutero: "Lutero" (1953), dirigido por Irving Pichel, e "Lutero" (2003), dirigido por Eric Till. O primeiro, lançado em um contexto de forte preocupação com a precisão histórica, apresenta Melanchthon como um aliado essencial de Lutero, especialmente em momentos cruciais como a tradução da Bíblia para o alemão. Nessa versão, Melanchthon é interpretado pelo ator inglês Guy Verney, e o filme é lembrado por sua tentativa de representar os eventos da Reforma com fidelidade. Mesmo assim, Melanchthon aparece como um personagem cujo brilho é ofuscado pelo protagonismo de Lutero, uma escolha narrativa que reflete o pensamento teológico das gerações posteriores.
Já na versão de Eric Till, lançada em 2003, Melanchthon é ainda mais secundário. Interpretado pelo ator alemão Lars Rudolph, ele aparece em poucas cenas, sempre ao lado de Lutero, mas sem grande destaque. Till opta por focar quase exclusivamente em Lutero, apresentando-o como uma figura solitária que lidera a Reforma por conta própria, uma abordagem que, embora dramática, distorce a realidade histórica. Essa escolha narrativa reforça a ideia equivocada de que Lutero foi o único motor da Reforma, ignorando o papel vital de colaboradores como Melanchthon.
A história da produção cinematográfica alemã também revela essa tendência de relegar Melanchthon a um segundo plano. Em filmes como "Lutero" (1923) e "Lutero" (1928), ambos dirigidos por cineastas alemães, sua figura mal aparece. Mesmo quando Melanchthon é retratado, sua presença é meramente acessória, servindo apenas para complementar a narrativa centrada em Lutero. Essa abordagem reflete uma visão simplista da história da Reforma, que subestima a contribuição significativa de outros reformadores.
Um aspecto central da atuação de Melanchthon na Reforma foi sua participação na Confissão de Augsburgo, um dos documentos mais importantes do movimento, que delineava os princípios fundamentais da fé protestante. Melanchthon desempenhou um papel crucial na elaboração desse documento, e sua participação é reconhecida por historiadores como um marco na história do cristianismo. No entanto, essa importância não é plenamente capturada nas produções cinematográficas. No filme de Pichel, de 1953, a Confissão de Augsburgo é abordada, e Melanchthon é mostrado como líder intelectual, sublinhando sua importância na elaboração do documento. Por outro lado, na versão de Till, de 2003, Melanchthon é retratado de maneira quase apagada, enquanto Lutero assume toda a responsabilidade e protagonismo, uma escolha que distorce a realidade histórica.
Ainda que Melanchthon tenha sido retratado com uma certa fidelidade histórica na versão de 1953, especialmente em sua contribuição como "mestre em grego de Lutero", o cinema ainda não fez jus ao seu impacto na Reforma. A teologia de Melanchthon, rica e independente, continua subestimada, frequentemente apresentada como um complemento à de Lutero, sem mencionar as divergências significativas entre os dois reformadores.
A representação de Philipp Melanchthon no cinema, portanto, reflete as complexidades e desafios de traduzir a história da Reforma Protestante para as telas. Embora tenha sido um dos principais arquitetos do movimento, sua presença nos filmes sobre a Reforma é geralmente ofuscada por Lutero, um reflexo tanto das escolhas artísticas dos cineastas quanto da própria história da Reforma, onde a figura de Lutero assumiu uma proeminência quase mítica. No entanto, para aqueles que desejam uma compreensão mais completa do período, é essencial reconhecer e valorizar a contribuição única de Melanchthon, cuja influência na teologia protestante e na história europeia foi profunda e duradoura.
Referências
ESPINOSA, Gastón; REDLING, Erik; STEVENS, Jason (Eds.). Protestants on screen: religion, politics, and aesthetics in European and American movies. New York, NY: Oxford University Press, 2023.
JUNG, M. H. Kirchengeschichte (3. überarb. u. aktual. Aufl.). Narr Francke Attempto Verlag, Tübingen, 2022.
PICHEL, I. (Diretor). Lutero [Filme]. Estados Unidos/Alemanha Ocidental. De Rochemont/Luterana Produções, 1953.
SCHEIBLE, H. (Ed.). Aufsätze zu Melanchthon. Tübingen, Mohr Siebeck, 2010.
SCHEIBLE, H. Melanchthon: Vermittler Der Reformation. Verlag C.H.Beck, 2016. http://www.jstor.org/stable/j.ctv1169b5w. Acessado em 17 de maio de 2024.
FRANK, G., LANGE, A. (Eds.). Philipp Melanchthon: Der Reformator zwischen Glauben und Wissen. Ein Handbuch. De Gruyter Reference, Berlin/Boston, 2017.
TILL, E. (Diretor). Lutero [Filme]. Alemanha: Eikon Film, NFP Teleart Berlin, 2003.
WIPFLER, Esther P.. Luther in Film und Fernsehen. Martin Luther: Ein Christ zwischen Reformen und Moderne (1517–2017), edited by Alberto Melloni, Berlin, Boston: De Gruyter, 2017.
Entre o Criador e o jogador.
28 de maio de 2024.
Existe um jogo curioso chamado The Sims. Nele, o jogador assume o papel de arquiteto da vida de pequenos personagens virtuais. Comanda suas rotinas, constrói suas casas, gerencia suas necessidades — fome, higiene, lazer, descanso — como quem brinca de ser Deus.
A proposta parece simples: fazer tudo funcionar. Garantir que cada pequeno ser digital viva com algum conforto, cumpra seus objetivos, encontre até o amor, desde que este coincida com a vontade do jogador. No fim das contas, o jogo é divertido justamente porque somos nós, do lado de cá da tela, que temos o controle. Não há resistência. Os Sims não questionam nossas decisões, apenas reclamam se algo não atende suas necessidades básicas. Reclamam, mas obedecem.
A vida real, contudo, é bem diferente.
Se eu quiser passar o dia inteiro trancado, diante do computador, sem comer, sem dormir, sem sequer pensar em higiene, posso. Nenhum aviso sonoro me alertará, nenhum ponteiro de energia vital irá despencar diante dos meus olhos. Só o corpo — mais tarde — responderá com cansaço, fome, talvez doença. E mesmo assim, posso insistir. Posso escolher o que quiser, inclusive contra mim mesmo.
É aí que reside o mistério mais profundo da existência: a liberdade.
Diferente de um jogo, fomos criados não como peças obedientes, mas como seres livres. E essa liberdade, que nos foi dada pelo Criador, não é um erro no sistema — é a sua marca mais sublime. Somos, por assim dizer, imagens de Deus que caminham com vontade própria. O mesmo Deus que poderia nos programar para amá-Lo, optou por nos chamar. Em vez de nos empurrar para a verdade, Ele nos convida.
Mas isso tem um custo.
Ao contrário de um jogador que vê tudo de fora, Deus se envolve. Ele conhece cada inclinação do nosso coração, cada necessidade que nem nós sabemos nomear. E mesmo assim, nos permite errar. Permite que busquemos amores que nos ferem, caminhos que nos frustram, verdades que se provam enganosas. Permite que O neguemos, mesmo sabendo que nossa cura só está n’Ele.
É um gesto de humildade divina: criar seres que podem recusá-Lo.
Por vezes, quando a vida se esvazia, voltamos os olhos para o alto e perguntamos — como o salmista — de onde virá o socorro. E mesmo quando esquecemos d’Ele, Ele não se esquece de nós. Diferente do jogador que abandona o controle, Deus permanece atento. Ele respeita nossa liberdade, mas nunca deixa de nos procurar.
Podemos pensar na história do filho pródigo: um filho que exige sua herança, parte para longe, desperdiça tudo e acaba faminto entre porcos. Mas a beleza da narrativa está em outro ponto — o pai permanece olhando para a estrada, esperando o retorno. E quando o vê, corre ao seu encontro.
Não há programa, não há sistema, não há inteligência artificial que simule esse tipo de amor. Porque o amor verdadeiro não controla, não manipula, não força. Ele convida, acolhe, transforma.
Talvez devêssemos lembrar disso quando estivermos cansados do jogo da vida. Quando parecer que estamos perdendo, que as coisas não fazem mais sentido, que não conseguimos organizar nossas próprias necessidades, talvez seja o momento de levantar os olhos — como os personagens virtuais acenam para o jogador — mas não para o céu pixelado de um jogo, e sim para o céu real, de onde vem o nosso socorro.
O Senhor que fez os céus e a terra não apenas nos criou: Ele caminha conosco. E, ainda que tenhamos liberdade para errar, temos sempre a chance de voltar.
Por que não somos máquinas.
21 de fevereiro de 2024.
O termo "robô" evoca a imagem de máquinas programadas para cumprir tarefas repetitivas, precisas e limitadas — ferramentas úteis, sem dúvida, mas incapazes de transcender sua programação. Sua existência é um testemunho do engenho humano, um avanço tecnológico admirável. No entanto, por mais sofisticados que sejam, os robôs jamais replicarão aquilo que nos torna verdadeiramente humanos: a capacidade de criar, sentir, questionar e buscar significado.
Mas e se fôssemos como eles?
A mera ideia parece absurda. Seríamos meros executores de comandos, desprovidos de criatividade, emoção ou autonomia. Nossa existência se resumiria a funções pré-definidas, sem a riqueza da experiência ou a profundidade da liberdade. Seríamos, em essência, instrumentos — uma existência mecânica e, convenhamos, profundamente tediosa.
Felizmente, não é assim que fomos feitos.
Diferentemente de uma máquina, sujeita a falhas e dependente de manutenção, o ser humano possui algo incomparável: o livre-arbítrio. Essa liberdade não apenas nos distingue das criações artificiais, mas também molda nossa jornada existencial, repleta de decisões que nos constroem, nos desafiam e nos transformam.
E se, em meio a esse universo de possibilidades, houver um Criador que, em vez de nos programar como autômatos, nos concedeu justamente essa liberdade? Ele não nos projetou como peças substituíveis em uma engrenagem cósmica, mas como seres dotados de vontade, capazes de escolher nosso caminho. No entanto, em Sua sabedoria, Ele não nos deixou à deriva: oferece-nos orientação, um norte moral que, quando seguido, nos conduz à plenitude.
Assim como um robô necessita de algoritmos para funcionar, nós também precisamos de princípios que direcionem nossa liberdade — não como imposição, mas como convite a uma vida com propósito. A verdadeira liberdade, portanto, não está na ausência de limites, mas na escolha consciente de seguir aquilo que nos eleva.
É aqui que entra o Espírito Santo, essa fonte inesgotável de sabedoria e força, que nos guia como uma bússola interior. E, em nossa caminhada, temos ainda a figura de Jesus, o amigo que vai além de qualquer assistente técnico: Ele nos compreende, nos restaura e nos mostra, em Sua própria vida, o que significa viver em liberdade sem perder a essência do amor e da verdade.
Ao contrário das máquinas, que se limitam a seus circuitos, nós podemos criar, amar, falhar e recomeçar. Seguir a Deus, portanto, não é uma obediência cega, mas uma adesão consciente a um propósito maior. É na entrega dessa liberdade que, paradoxalmente, nos encontramos verdadeiramente livres.
Poderíamos viver como robôs, cumprindo ordens sem reflexão. Mas, em nossa humanidade, escolhemos mais. Escolhemos crer, esperar e amar. Escolhemos nos deixar guiar por Aquele que, em vez de nos controlar, nos chama à liberdade responsável — a única que pode preencher o vazio que nenhuma máquina jamais entenderá.
Eu poderia tentar ser o dono do meu destino. Mas, no exercício dessa mesma liberdade, decidi confiá-lo a Deus. E, nessa entrega, descobri o que significa, de fato, ser livre.
J. C. Ryle e a pandemia
10 de dezembro de 2021
Como alguma frequência em seus livros, essencialmente na trilogia do anglicanismo evangélico (Nós Desatados, Caminhos Antigos e Religião Prática), nos deparamos com algumas indicações figurativas de J. C. Ryle em relação a doença e epidemias. Muitas delas são dignas de nota, como segue:
Em "Nós Desatados":
"Sinto que todos nós precisamos cada vez mais da presença do Espírito Santo em nosso coração para nos guiar, ensinar e manter-nos sãos na fé. Todos nós precisamos vigiar mais e orar para sermos sustentados e preservados da queda. Mas, ainda assim, existem certas grandes verdades que, em um dia como este, somos especialmente obrigados a manter em mente. Há ocasiões em que alguma epidemia comum invade uma terra, quando os remédios, sempre valiosos, adquirem um valor peculiar. Existem lugares onde prevalece uma malária peculiar, nos quais os remédios, em todo lugar valiosos, são mais valiosos do que nunca em consequência dela. Portanto, creio que há momentos e épocas na Igreja de Cristo quando somos obrigados a apertar nosso apego a grandes princípios verdadeiros, agarrá-los com mais firmeza do que a normal em nossas mãos, pressioná-los contra nossos corações, e não permitir que eles nos deixem" (Fariseus e Saduceus).
"Aconselho todo verdadeiro servo de Cristo a examinar seu próprio coração frequentemente e cuidadosamente quanto a seu estado diante de Deus. Esta é uma prática sempre útil: é especialmente desejável nos dias de hoje. Quando a grande praga de Londres estava no auge, as pessoas observavam os menores sintomas que apareciam em seus corpos de uma forma que nunca haviam notado antes. Um ponto aqui ou ali, que em tempo de saúde os homens não se importavam, recebia muita atenção quando a peste estava dizimando famílias e atacando uma após a outra! Assim deve ser conosco, nos tempos em que vivemos. Devemos cuidar de nossos corações com dupla vigilância. Devemos dedicar mais tempo à meditação, ao autoexame e à reflexão" (Fariseus e Saduceus).
"O pensamento da presença de Deus é um conforto em tempos de calamidade pública. Quando a guerra, a fome e a peste invadem uma terra, quando as nações são dilaceradas por divisões internas e toda a ordem parece em perigo, é animador refletir que Deus vê e sabe e está próximo, que o Rei dos reis está perto, e não está dormindo" (A Presença Real).
Em "Caminhos Antigos"
"As provações muitas vezes nos atingem de repente, como um homem armado. Doenças e ferimentos em nosso corpo mortal às vezes nos deixam deitados em nossas camas, sem qualquer aviso. Feliz é aquele que mantém sua lâmpada bem aparada e vive no sentido diário da comunhão com Cristo!" (Nossa esperança!).
Em "Religião Prática":
"Pode chegar o dia em que, após uma longa luta contra a doença, sentiremos que a medicina não pode mais fazer e que nada resta senão morrer. Amigos estarão de prontidão, incapazes de nos ajudar. A audição, a visão, até mesmo o poder de orar, estarão rapidamente falhando. O mundo e suas sombras estarão derretendo sob nossos pés. A eternidade, com suas realidades, surgirá diante de nossas mentes. O que nos apoiará nessa hora difícil? O que deve nos capacitar a sentir: "Não temo o mal"? (Salmo 23. 4). Nada, nada pode fazer isso, exceto uma comunhão íntima com Cristo. Cristo habitando em nossos corações pela fé, Cristo colocando Seu braço direito sob nossas cabeças, Cristo estando sentado ao nosso lado, só Cristo pode nos dar a vitória completa na última luta" (Doença).
"O tempo é curto. A moda deste mundo passa. Mais algumas doenças e tudo estará acabado. Mais alguns funerais e nosso próprio funeral acontecerá. Mais algumas tempestades e lançamentos e estaremos seguros no porto. Nós viajamos para um mundo onde não há mais doenças, onde a separação, a dor, o choro e o luto terminam para sempre. O céu está se tornando a cada ano mais cheio e a terra mais vazia. Os amigos à frente estão se tornando mais numerosos do que os amigos da popa. "Ainda um pouco de tempo e Aquele que há de vir virá e não tardará" (Hebreus 10. 37). Em Sua presença haverá plenitude de alegria. Cristo enxugará todas as lágrimas dos olhos de Seu povo. O último inimigo a ser destruído é a Morte. Mas ela será destruído. A própria morte morrerá um dia (Apocalipse 20. 14)" (Doença).
Apologética
18 de outubro de 2019
Talvez não haja um assunto tão importante e que para mim tenha um efeito tão edificante quanto a Apologética. Se você ler Atos 17, ficará abismado com a ousadia que Paulo teve diante dos epicuristas e estoicos. Quando nos lançamos ao mundo, nos colocando do lado cético e/ou ignorante ao que acreditamos, muitas vezes achamos que o cristianismo é uma religião ultrapassada, que se baseia em premissas insatisfatórias e, diante da infinidade de opções religiosas, se mostra apenas uma ideia dentre as demais interpretações sobre a vida. Mas, lá longe da Igreja, como C. S. Lewis bem nos fala, sofremos angustiantemente e isso nos faz lembrar do quão limitados somos e de tão poucas respostas sensatas possuímos para nossa brevidade nesta Terra, sendo o cristianismo ao meu ver a resposta mais racional aos nossos anseios, até mesmo aqueles que negamos ter.
Como diz Mateus 24: 35, "O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão". Talvez a principal prova quanto as alegações de ateus e outras religiões modernas estejam neste versículo. Muitas religiões foram (religiões egípcias) e outras surgiram (islamismo), muitos impérios perseguiram os cristãos em diversas épocas (os romanos no princípio e os soviéticos mais recentemente). Não esquecendo que os cristãos foram perseguidos intelectualmente durante o Iluminismo, que procurou teorizar demais a fé, e atualmente durante a revolução tecnológica, que nos satisfaz como se esse minúsculo tempo em que vivemos pareça eterno. Ainda assim, a Palavra nunca deixou de ser relevante em todos os campos, sendo que todos aqueles cristãos que estavam por detrás de uma mudança que revolucionou algo para a sociedade (quer sejam cientistas pioneiros ou importantes contribuintes aos preceitos de direito, política e literário) tinham a Bíblia como parâmetro.
O versículo mais utilizado como motor para o apologista possivelmente seja 1 Pedro 3: 15: "Antes, santifiquem Cristo como Senhor no coração. Estejam sempre preparados para responder a qualquer que lhes pedir a razão da esperança que há em vocês". A resposta racional da nossa fé pode ser encontrada com um estudo profundo das Escrituras, o que talvez tenha relação a própria ruína do povo quando a deixa de lado (cf. Oseias 4: 6).
Apesar de toda a ênfase dada por Paulo em seu ministério, acho difícil justificar a pena de morte para hereges, por exemplo. Um herege, pela definição simplória, é alguém que discorda de um certo dogma, não na sua totalidade, mas distorce uma crença fundamental ou cria para si uma interpretação absurda. Uma pessoa que pratica tal absurdo tem objetivos diversos, mas reservo os dois principais: na antiguidade, quando Estado e Igreja eram apenas um poder, a heresia destruiria tudo (Agostinho parece ter defendido a pena de morte nessa circunstância). No atual momento, já não coexistindo sob o mesmo poder - uma herança da Reforma Protestante - apenas para destruir um sistema de crenças qualquer (parece que acabei de descrever o fundamento de um marxista). Logo, ainda que um herege atual venha com absurdos individuais para invalidar o Cristianismo, provavelmente ele irá aparecer tanto quanto Dan Brown, mas ainda assim nada justificaria a pena de morte. O fato mais emblemático quanto a esse assunto é a história de Sebastian Castellio (1515-1563). Fugindo da Inquisição francesa, que punia de forma capital os hereges, conseguiu um cargo de reitor na Genebra de Calvino, onde viu a mesma punição sendo aplicada aos hereges. Segundo Voltaire, a expulsão de Castellio de Genebra por Calvino por sua tolerância e sua morte na pobreza é devido à sua excelente erudição, possivelmente superior ao de Calvino. É dele a frase: "Matar um homem não significa proteger uma doutrina, significa matar um homem." [1]
Pois bem, alguns ditos apologistas podem cair no erro de achar que a Apologética é um combate frenético contra seitas heréticas cristãs. Esses mesmos parecem pensar que vivemos na época da Igreja-Estado, e que todos vivemos sob o cristianismo obrigatório, ou seja, que não há ateus, indiferentes ou outras religiões, tal como os fariseus faziam com Cristo - para eles, Jesus é que era herege. Entretanto, não havendo a pena de morte, ofensa neles!
Não parece que Paulo desejava que Nero tornasse o cristianismo a religião oficial do Estado para que pudesse queimar na fogueira os estoicos, para que deixassem de ser estoicos. Afinal, Paulo deixou de ser um perseguidor e passou a ser perseguido, não o contrário. Paulo tinha não apenas a convicção no coração de Jesus era Deus e que precisava ser pregado a todos, fosse Judeu, Gentio, Estoico, mas também que precisava argumentar sobre sua fé, sobre ser como Cristo. Sua atuação sem dúvida fez o cristianismo crescer nos primeiros anos. Diferente de todos os movimentos que reprimiam com morte os hereges, as bruxas, etc., que declinaram profundamente.
A apologética de Atos 17 é essencialmente contra os pagãos. Deve-se combater, entretanto, as heresias de seitas cristãs também. Contudo, dificilmente combateremos o pecado atirando pedras, já que todos somos de alguma forma pecadores, independente do grau. Se cremos que o Espírito Santo nos convencerá de nossos pecados, as palavras que dizemos já devem ser suficientes.
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Notas:
[1] Hominem ocident non non doutrin tueri sed hominem ocidere.