31.março.25
Uma mulher para ser lembrada.
"Lembrem-se da mulher de Ló" (Lucas 17. 32).
Há poucos avisos nas Escrituras mais solenes do que este que inicia esta página. O Senhor Jesus Cristo nos diz: "Lembrem-se da mulher de Ló."
A mulher de Ló professava a religião: seu marido era um “homem justo” (2 Pedro 2. 8). Ela deixou Sodoma com ele no dia em que Sodoma foi destruída; olhou para trás, em direção à cidade, atrás de seu marido, contra a ordem expressa de Deus; foi fulminada imediatamente e transformada em uma estátua de sal. E o Senhor Jesus Cristo a apresenta como um alerta para a Sua Igreja: Ele diz, "Lembrem-se da mulher de Ló."
É um aviso solene, quando pensamos na pessoa que Jesus menciona. Ele não nos manda lembrar de Abraão, ou Isaque, ou Jacó, ou Sara, ou Ana, ou Rute. Não: Ele escolhe uma cuja alma foi perdida para sempre. Ele clama a nós: "Lembrem-se da mulher de Ló."
É um aviso solene, quando consideramos o tema de que Jesus está tratando. Ele está falando de Sua própria segunda vinda para julgar o mundo: está descrevendo o estado terrível de despreparo em que muitos serão encontrados. Os últimos dias estão em Sua mente, quando Ele diz: "Lembrem-se da mulher de Ló."
É um aviso solene, quando pensamos na pessoa que o dá. O Senhor Jesus é cheio de amor, misericórdia e compaixão: Ele é alguém que não quebrará a cana rachada nem apagará o pavio que fumega. Ele pôde chorar sobre a Jerusalém incrédula e orar pelos homens que O crucificaram; e ainda assim, até Ele acha bom nos lembrar das almas perdidas. Até Ele diz: "Lembrem-se da mulher de Ló."
É um aviso solene, quando pensamos nas pessoas a quem foi dado primeiramente. O Senhor Jesus estava falando com Seus discípulos: Ele não estava se dirigindo aos escribas e fariseus, que O odiavam, mas a Pedro, Tiago e João, e muitos outros que O amavam; e ainda assim, até a eles, Ele achou por bem dirigir uma advertência. Até a eles, Ele diz: "Lembrem-se da mulher de Ló."
É um aviso solene, quando consideramos o modo como foi dado. Ele não diz apenas: “Cuidado ao seguir — tomem cuidado ao imitar — não sejam como a mulher de Ló.” Ele usa uma palavra diferente: Ele diz, “Lembrem-se.” Ele fala como se todos estivéssemos em perigo de esquecer o assunto; Ele desperta nossas memórias preguiçosas; Ele nos ordena a manter o caso diante de nossas mentes. Ele clama: "Lembrem-se da mulher de Ló."
Proponho examinar as lições que a mulher de Ló deve nos ensinar. Tenho certeza de que sua história está cheia de instruções úteis para a Igreja. Os últimos dias estão sobre nós; a segunda vinda do Senhor Jesus se aproxima; o perigo da mundanidade aumenta a cada ano na Igreja. Que estejamos munidos de salvaguardas e antídotos contra a doença que nos cerca; e, não menos importante, que nos familiarizemos com a história da mulher de Ló.
Há três coisas que farei para apresentar o assunto de forma ordenada diante de nossas mentes:
I. Falarei sobre os privilégios religiosos que a mulher de Ló teve.
II. Falarei sobre o pecado que a mulher de Ló cometeu.
III. Falarei sobre o juízo que Deus infligiu a ela.
I. Primeiro, falarei sobre os privilégios religiosos que a mulher de Ló teve.
Nos dias de Abraão e Ló, a verdadeira religião salvadora era rara na terra: não havia Bíblias, nem ministros, nem igrejas, nem folhetos, nem missionários. O conhecimento de Deus estava restrito a poucas famílias favorecidas; a maior parte dos habitantes do mundo vivia em trevas, ignorância, superstição e pecado. Talvez nem uma em cada cem pessoas tivesse tão bom exemplo, tão boa companhia espiritual, conhecimento tão claro, advertências tão explícitas quanto a mulher de Ló. Comparada com milhões de seus semelhantes na sua época, a mulher de Ló foi uma mulher privilegiada.
Ela tinha um homem piedoso como marido: tinha Abraão, o pai da fé, como tio por casamento. A fé, o conhecimento e as orações desses dois homens justos não podiam ter sido segredo para ela. É impossível que ela tenha habitado em tendas com eles por algum tempo sem saber a quem pertenciam e a quem serviam. A religião, para eles, não era um assunto formal; era o princípio governante de suas vidas e a mola mestra de todas as suas ações. Tudo isso a mulher de Ló deve ter visto e conhecido. Esse não foi um privilégio pequeno.
Quando Abraão recebeu pela primeira vez as promessas, é provável que a mulher de Ló estivesse lá. Quando ele construiu seu altar junto à sua tenda entre Hai e Betel, é provável que ela estivesse lá. Quando seu marido foi feito prisioneiro por Quedorlaomer e libertado pela intervenção de Deus, ela estava lá. Quando Melquisedeque, rei de Salém, saiu ao encontro de Abraão com pão e vinho, ela estava lá. Quando os anjos vieram a Sodoma e advertiram seu marido a fugir, ela os viu; quando eles os tomaram pela mão e os conduziram para fora da cidade, ela foi uma das pessoas a quem ajudaram a escapar. Mais uma vez, repito, esses não foram privilégios pequenos.
Mas de que adiantaram todos esses privilégios no coração da esposa de Ló? De nada. Apesar de todas as suas oportunidades e meios de graça — apesar de todos os seus avisos especiais e mensagens vindas do céu — ela viveu e morreu sem graça, sem Deus, impenitente e incrédula. Os olhos do seu entendimento nunca foram abertos; sua consciência nunca foi verdadeiramente despertada e vivificada; sua vontade nunca foi realmente levada a um estado de obediência a Deus; seus afetos nunca foram verdadeiramente direcionados às coisas do alto. A forma de religião que ela mantinha era por conveniência, e não por convicção: era uma capa usada para agradar as pessoas ao seu redor, mas não por qualquer senso de seu valor. Ela fazia como os outros ao seu redor na casa de Ló: conformava-se aos costumes do marido; não se opunha à religião dele; deixava-se ser passivamente arrastada em sua esteira; mas, o tempo todo, seu coração estava errado aos olhos de Deus. O mundo estava em seu coração, e seu coração estava no mundo. Nesse estado ela viveu, e nesse estado ela morreu.
Em tudo isso há muito a se aprender: vejo aqui uma lição de extrema importância para os dias de hoje. Você vive em tempos em que há muitas pessoas exatamente como a esposa de Ló: venha e ouça a lição que o caso dela pretende ensinar.
Aprenda, então, que a simples posse de privilégios religiosos não salva a alma de ninguém. Você pode ter todas as vantagens espirituais possíveis; pode viver sob a plena luz das mais ricas oportunidades e meios de graça; pode desfrutar das melhores pregações e dos ensinamentos mais seletos; pode habitar no meio da luz, do conhecimento, da santidade e de boa companhia. Tudo isso pode acontecer, e mesmo assim você permanecer não convertido, e por fim se perder para sempre.
Imagino que essa doutrina pareça dura para alguns leitores. Sei que muitos imaginam que só lhes faltam privilégios religiosos para se tornarem cristãos decididos. Reconhecem que não são o que deveriam ser no momento, mas alegam que sua posição é muito difícil e que têm muitos obstáculos. Dê a eles um marido piedoso, ou uma esposa piedosa — dê companhias piedosas, ou um patrão piedoso — dê a pregação do Evangelho — dê privilégios, e então andarão com Deus.
Tudo isso é um engano. É uma ilusão completa. É preciso mais do que privilégios para salvar almas. Joabe foi capitão de Davi; Geazi foi servo de Eliseu; Demas foi companheiro de Paulo; Judas Iscariotes foi discípulo de Cristo; e Ló teve uma esposa mundana e incrédula. Todos esses morreram em seus pecados. Foram ao abismo apesar do conhecimento, dos avisos e das oportunidades; e todos nos ensinam que não são apenas privilégios que as pessoas necessitam. Elas precisam da graça do Espírito Santo.
Valorizemos os privilégios religiosos, mas não nos apoiemos unicamente neles. Desejemos usufruir deles em todos os aspectos da vida, mas não os coloquemos no lugar de Cristo. Usemos tais privilégios com gratidão, se Deus os conceder a nós, mas cuidemos para que produzam algum fruto em nosso coração e em nossa vida. Se não fizerem bem, muitas vezes farão mal: cauterizam a consciência, aumentam a responsabilidade, agravam a condenação. O mesmo fogo que derrete a cera endurece o barro; o mesmo sol que faz crescer a árvore viva resseca a árvore morta e a prepara para a queima. Nada endurece tanto o coração humano quanto uma familiaridade estéril com as coisas sagradas. Mais uma vez digo: não são apenas os privilégios que tornam alguém cristão, mas a graça do Espírito Santo. Sem isso, ninguém jamais será salvo.
Peço aos membros das congregações evangélicas, nos dias de hoje, que prestem muita atenção ao que estou dizendo. Você frequenta a igreja do Sr. A ou do Sr. B: acha-o um excelente pregador; delicia-se com seus sermões; não consegue ouvir mais ninguém com o mesmo conforto; aprendeu muitas coisas desde que começou a frequentar o ministério dele; considera um grande privilégio ser um dos seus ouvintes! Tudo isso é muito bom. É um privilégio. Fico feliz se ministros como o seu se multiplicarem mil vezes. Mas, no fim das contas, o que você tem no coração? Você já recebeu o Espírito Santo? Se não, não é melhor do que a esposa de Ló.
Peço aos empregados de famílias religiosas que prestem atenção ao que estou dizendo. É um grande privilégio viver em uma casa onde o temor de Deus reina. É um privilégio ouvir orações em família de manhã e à noite, ouvir a Palavra de Deus ser regularmente ensinada, ter um domingo tranquilo e poder sempre ir à igreja. Essas são as coisas que você deveria buscar ao procurar um emprego; essas são as coisas que fazem de um lugar um bom lugar de verdade. Salários altos e trabalho leve nunca compensarão um ambiente de constante mundanismo, violação do sábado e pecado. Mas cuidado para não se dar por satisfeito com essas coisas: não suponha que, por ter todas essas vantagens espirituais, irá automaticamente para o céu. Você precisa ter graça em seu próprio coração, além de participar das orações em família. Caso contrário, no momento, você não é melhor do que a esposa de Ló.
Peço aos filhos de pais religiosos que prestem bastante atenção ao que estou dizendo. É o mais alto privilégio ser filho de um pai e de uma mãe piedosos, e ser criado no meio de muitas orações. É realmente uma bênção ser ensinado no Evangelho desde a mais tenra infância, e ouvir falar do pecado, de Jesus, do Espírito Santo, da santidade e do céu desde o primeiro momento em que conseguimos nos lembrar de qualquer coisa. Mas, oh, tomem cuidado para não permanecerem estéreis e infrutíferos à luz de todos esses privilégios: cuidado para que seus corações não permaneçam duros, impenitentes e mundanos, apesar das muitas vantagens que vocês desfrutam. Você não pode entrar no Reino de Deus com base na religião dos seus pais. Você precisa comer o pão da vida por si mesmo, e ter o testemunho do Espírito em seu próprio coração. Você precisa ter arrependimento seu, fé sua, e santificação sua. Caso contrário, você não é melhor do que a esposa de Ló.
Oro a Deus para que todos os cristãos professos, nestes dias, levem essas coisas a sério. Que nunca nos esqueçamos de que os privilégios, por si sós, não podem nos salvar. Luz e conhecimento, pregação fiel, abundantes meios de graça e a companhia de pessoas santas são todas grandes bênçãos e vantagens. Felizes os que as têm! Mas, no fim, há uma coisa sem a qual os privilégios são inúteis: essa coisa é a graça do Espírito Santo. A esposa de Ló teve muitos privilégios; mas a esposa de Ló não teve graça.
II. Agora falarei do pecado que a esposa de Ló cometeu.
A história de seu pecado é relatada pelo Espírito Santo em poucas e simples palavras — “Ela olhou para trás, atrás de seu marido, e virou uma estátua de sal.” Não nos é dito mais do que isso. Há uma solenidade nua nessa história. A essência e substância de sua transgressão está nestas três palavras: “Ela olhou para trás.”
Esse pecado parece pequeno aos olhos de algum leitor deste texto? A falha da esposa de Ló parece algo trivial para merecer tamanho castigo? Esse é o sentimento, imagino, que surge em alguns corações. Preste atenção enquanto eu argumento com você sobre o assunto. Houve muito mais nesse olhar do que se percebe à primeira vista: ele implicava muito mais do que expressava. Escute, e você verá.
(a) Aquele olhar foi algo pequeno, mas revelou o verdadeiro caráter da esposa de Ló. Coisas pequenas muitas vezes mostram o estado da mente de uma pessoa até melhor do que as grandes, e pequenos sintomas são frequentemente sinais de doenças mortais e incuráveis. A maçã que Eva comeu era algo pequeno, mas provou que ela havia caído da inocência e se tornado pecadora. Uma rachadura em um arco parece uma coisa pequena, mas prova que a fundação está cedendo, e toda a estrutura é insegura. Uma tosse leve pela manhã parece um mal insignificante, mas frequentemente é sinal de fraqueza no organismo, e leva ao declínio, à tuberculose e à morte. Um pedaço de palha pode indicar para onde sopra o vento, e um olhar pode mostrar a condição corrompida do coração de um pecador (Mateus 5. 28).
(b) Aquele olhar foi algo pequeno, mas mostrou desobediência na esposa de Ló. A ordem do anjo foi direta e inconfundível: “Não olhe para trás” (Gênesis 19. 17). Essa ordem a esposa de Ló se recusou a obedecer. Mas o Espírito Santo diz que “obedecer é melhor do que sacrificar”, e que “a rebelião é como o pecado de feitiçaria” (1 Samuel 15. 22, 23). Quando Deus fala claramente por Sua Palavra, ou por Seus mensageiros, o dever do ser humano é claro.
(c) Aquele olhar foi algo pequeno, mas demonstrou orgulho e incredulidade na esposa de Ló. Ela pareceu duvidar se Deus realmente destruiria Sodoma: pareceu não acreditar que houvesse qualquer perigo, ou qualquer necessidade de uma fuga tão apressada. Mas sem fé é impossível agradar a Deus (Hebreus 11. 6). No momento em que uma pessoa começa a achar que sabe mais do que Deus, e que Deus não está falando sério quando ameaça, sua alma está em grande perigo. Quando não conseguimos ver a razão dos atos de Deus, nosso dever é ficar em silêncio e crer.
(d) Aquele olhar foi algo pequeno, mas revelou amor secreto pelo mundo na esposa de Ló. Seu coração estava em Sodoma, embora seu corpo estivesse fora. Ela havia deixado seus afetos para trás quando fugiu de casa. Seu olhar se voltou para o lugar onde estava seu tesouro, assim como a agulha da bússola se volta para o polo. E esse foi o ponto culminante de seu pecado. “A amizade do mundo é inimizade contra Deus” (Tiago 4. 4). “Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele” (1 João 2. 15).
Peço atenção especial dos leitores para esta parte do nosso assunto. Acredito que esta é a parte à qual o Senhor Jesus pretende particularmente dirigir nossa mente. Creio que Ele deseja que observemos que a esposa de Ló se perdeu por olhar para trás, para o mundo. Sua profissão de fé parecia, por um tempo, honesta e promissora, mas ela nunca abandonou realmente o mundo. Ela parecia, por um tempo, estar no caminho da salvação, mas mesmo então os pensamentos mais profundos e baixos do seu coração estavam voltados para o mundo. O imenso perigo da mundanidade é a grande lição que o Senhor Jesus quer que aprendamos. Oh, que todos nós tenhamos olhos para ver e corações para entender!
Acredito que nunca houve um tempo em que os avisos contra a mundanidade fossem tão necessários à Igreja de Cristo como nos dias de hoje. Dizem que cada época tem sua própria doença epidêmica: a doença epidêmica à qual as almas dos cristãos estão sujeitas atualmente é o amor ao mundo. É uma peste que anda na escuridão, uma enfermidade que destrói ao meio-dia. “Derrubou muitos feridos; sim, muitos homens fortes foram feridos por ela.” Gostaria de erguer uma voz de alerta e tentar despertar a consciência adormecida de todos os que professam religião. Gostaria de clamar em alta voz: “Lembre-se do pecado da esposa de Ló.” Ela não foi assassina, nem adúltera, nem ladra — mas era uma professa da religião, e olhou para trás.
Há milhares de pessoas batizadas em nossas igrejas que são imunes à imoralidade e à incredulidade, e ainda assim se tornam vítimas do amor ao mundo. Há milhares que correm bem por um tempo e parecem estar no caminho certo para o céu, mas, depois de um tempo, desistem da corrida e viram completamente as costas para Cristo. E o que os deteve? Descobriram que a Bíblia não é verdadeira? Descobriram que o Senhor Jesus falhou em cumprir sua palavra? Não: de forma alguma. Mas foram contaminados pela doença epidêmica: estão infectados com o amor a este mundo. Apelo a todo ministro evangélico verdadeiro que leia este texto: peço que olhe ao redor de sua congregação. Apelo a todo cristão experiente: peço que observe o círculo de seus conhecidos. Tenho certeza de que estou dizendo a verdade. Tenho certeza de que é mais do que tempo de lembrar o pecado da esposa de Ló.
(a) Quantos filhos de famílias religiosas começam bem e terminam mal! Nos dias da infância, parecem cheios de religiosidade. Podem recitar textos e hinos em abundância; têm sentimentos espirituais e convicções de pecado; dizem amar o Senhor Jesus e desejar o céu; sentem prazer em ir à igreja e ouvir sermões; dizem coisas que são guardadas por seus pais amorosos como indícios de graça; fazem coisas que levam os parentes a dizer: “Que tipo de criança será esta?” Mas, infelizmente, com que frequência sua bondade desaparece como a nuvem da manhã e como o orvalho que se dissipa! O menino se torna um jovem e não se importa com nada além de diversões, esportes, festas e excessos. A menina se torna uma jovem e só se importa com roupas, companhias alegres, romances e agitação. Onde está a espiritualidade que antes parecia tão promissora? Foi-se: está enterrada; foi inundada pelo amor ao mundo. Andam nos passos da esposa de Ló. Olham para trás.
(b) Quantos casais se mostram bem na religião, aparentemente, até que seus filhos começam a crescer — e então se desviam! Nos primeiros anos da vida conjugal, parecem seguir Cristo com diligência e dar um bom testemunho. Frequentam regularmente a pregação do Evangelho; são frutíferos em boas obras; nunca são vistos em sociedades vãs e dissipadas. Sua fé e prática são firmes e caminham juntas. Mas, infelizmente, com que frequência uma praga espiritual cai sobre o lar quando uma jovem família começa a crescer e filhos e filhas precisam ser introduzidos na vida. Um fermento de mundanismo começa a aparecer em seus hábitos, roupas, festas e uso do tempo. Já não são rigorosos quanto às companhias que frequentam e aos lugares que visitam. Onde está a clara linha de separação que antes observavam? Onde está a abstenção firme de diversões mundanas que antes marcava seu caminho? Tudo foi esquecido. Tudo foi deixado de lado, como um almanaque velho. Uma mudança tomou conta deles: o espírito do mundo se apossou de seus corações. Andam nos passos da esposa de Ló. Olham para trás.
(c) Quantas jovens parecem amar a religião decidida até os vinte ou vinte e um anos, e depois perdem tudo! Até esse momento da vida, sua conduta nos assuntos religiosos é tudo o que se poderia desejar. Mantêm hábitos de oração particular; leem suas Bíblias com diligência; visitam os pobres quando têm oportunidade; ensinam em escolas dominicais quando há espaço; atendem às necessidades temporais e espirituais dos necessitados; gostam de amizades religiosas; amam conversar sobre assuntos espirituais; escrevem cartas cheias de expressões e experiências religiosas. Mas, infelizmente, com que frequência se mostram instáveis como a água e são arruinadas pelo amor ao mundo! Pouco a pouco se afastam e perdem o primeiro amor. Pouco a pouco as “coisas visíveis” expulsam de suas mentes as “coisas invisíveis” e, como a praga dos gafanhotos, devoram toda verdura em suas almas. Passo a passo se afastam da posição decidida que antes assumiram. Deixam de ser zelosas quanto à sã doutrina; fingem descobrir que é “falta de caridade” pensar que uma pessoa tem mais religião que outra; concluem que é “exclusivismo” tentar qualquer separação dos costumes da sociedade. Pouco a pouco entregam seus afetos a algum homem que não demonstra qualquer religiosidade verdadeira. Por fim, acabam por abandonar o último vestígio de seu próprio cristianismo e se tornam completamente filhas do mundo. Andam nos passos da esposa de Ló. Olham para trás.
(d) Quantos participantes da ceia em nossas igrejas foram em outro tempo professos zelosos e fervorosos, e agora se tornaram apáticos, formais e frios! Houve um tempo em que ninguém parecia mais vivo na religião do que eles: ninguém era tão diligente na frequência aos meios de graça; ninguém era tão ansioso em promover a causa do Evangelho e tão pronto para toda boa obra; ninguém era tão grato pela instrução espiritual; ninguém aparentemente desejava tanto crescer em graça. Mas agora, infelizmente, tudo parece mudado! O “amor por outras coisas” tomou conta de seus corações e sufocou a boa semente da Palavra. O dinheiro do mundo, as recompensas do mundo, a literatura do mundo, as honrarias do mundo agora ocupam o primeiro lugar em seus afetos. Converse com eles e você não ouvirá nenhuma resposta sobre coisas espirituais. Observe sua conduta diária e você não verá nenhum zelo pelo reino de Deus. De fato, têm uma religião, mas já não é uma religião viva. A fonte do cristianismo que antes possuíam secou e desapareceu; o fogo da máquina espiritual se apagou e esfriou: a terra extinguiu a chama que antes ardia com tanto brilho. Andaram nos passos da esposa de Ló. Olharam para trás.
(e) Quantos ministros trabalham arduamente em sua vocação por alguns anos e depois se tornam preguiçosos e indolentes por causa do amor a este mundo presente! No início de seu ministério, parecem dispostos a gastar-se e deixar-se gastar por Cristo: são diligentes em tempo e fora de tempo; sua pregação é cheia de vida e suas igrejas ficam cheias. Suas congregações são bem cuidadas: palestras em casas, reuniões de oração, visitas de casa em casa são suas delícias semanais. Mas, infelizmente, com que frequência, depois de “começar no Espírito”, terminam “na carne” e, como Sansão, perdem a força no colo daquela Dalila, o mundo! São promovidos a algum bom benefício; casam-se com uma esposa mundana; enchem-se de orgulho e negligenciam o estudo e a oração. Uma geada cortante destrói as flores espirituais que antes prometiam tanto. Sua pregação perde a unção e o poder; seu trabalho durante a semana diminui cada vez mais; o círculo social em que se movem torna-se menos seleto; o tom de sua conversa se torna mais terreno. Deixam de desprezar a opinião dos homens: absorvem um medo doentio de “pontos de vista extremos” e são dominados por um receio cauteloso de causar ofensa. E, por fim, o homem que em outro tempo parecia destinado a ser um verdadeiro sucessor dos apóstolos e um bom soldado de Cristo, acomoda-se como um jardineiro clerical, fazendeiro ou comensal, por quem ninguém se sente ofendido e ninguém é salvo. Sua igreja fica meio vazia; sua influência se esvai; o mundo o prendeu de mãos e pés. Ele andou nos passos da esposa de Ló. Ele olhou para trás [1].
É triste escrever sobre essas coisas, mas é ainda mais triste vê-las. É triste observar como cristãos professos conseguem cegar suas consciências com argumentos convincentes sobre este assunto, e conseguem defender a mundanidade evidente falando sobre os “deveres de sua posição”, as “cortesias da vida” e a necessidade de ter uma “religião alegre”.
É triste ver quantos navios valentes lançam-se na viagem da vida com todas as perspectivas de sucesso e, ao abrir essa brecha da mundanidade, afundam com toda a sua carga diante do porto da segurança. É ainda mais triste observar quantos se iludem pensando que está tudo bem com suas almas, quando está tudo errado, por causa desse amor ao mundo. Cabelos grisalhos já aparecem aqui e ali, e eles nem percebem. Começaram com Jacó, Davi e Pedro, e têm grandes chances de terminar com Esaú, Saul e Judas Iscariotes. Começaram com Rute, Ana, Maria e Pérsis, e é provável que terminem com a esposa de Ló.
Cuidado com uma religião pela metade. Cuidado com seguir a Cristo por algum motivo secundário — para agradar parentes e amigos, para manter os costumes do lugar ou da família onde você vive, para parecer respeitável e ter fama de religioso. Siga Cristo por Ele mesmo, se você for segui-lo. Seja completo, seja verdadeiro, seja honesto, seja firme, seja inteiro. Se você tem alguma religião, que sua religião seja real. Certifique-se de não cometer o pecado da esposa de Ló.
Cuidado com a ideia de que é possível ir longe demais na religião e com a tentativa secreta de manter-se de bem com o mundo. Não quero que nenhum leitor deste texto se torne um eremita, um monge ou uma freira: desejo que todos cumpram seu verdadeiro dever no estado de vida ao qual foram chamados. Mas insisto com todo cristão professante que deseja ser feliz sobre a imensa importância de não fazer qualquer concessão entre Deus e o mundo. Não tente barganhar, como se quisesse dar a Cristo o mínimo possível do seu coração e manter o máximo possível das coisas desta vida. Cuidado para não se enganar e acabar perdendo tudo. Ame a Cristo com todo o seu coração, mente, alma e força. Busque primeiro o reino de Deus, e creia que todas as outras coisas lhe serão acrescentadas. Cuidado para não se tornar um retrato do personagem que João Bunyan descreve — o Sr. Duas-caras. Pelo bem da sua felicidade, pelo bem da sua utilidade, pelo bem da sua segurança, pelo bem da sua alma, cuidado com o pecado da esposa de Ló. Oh, é uma declaração solene de nosso Senhor Jesus: “Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lucas 9. 62).
III. Agora falarei, por fim, do castigo que Deus infligiu à esposa de Ló.
A Escritura descreve seu fim com poucas e simples palavras. Está escrito que “ela olhou para trás e se tornou uma estátua de sal.” Um milagre foi realizado para executar o juízo de Deus sobre essa mulher culpada. A mesma mão onipotente que primeiro lhe deu a vida, tirou essa vida num piscar de olhos. De carne e sangue vivos, ela foi transformada em uma estátua de sal.
Esse foi um fim terrível para uma alma chegar! Morrer em qualquer tempo é algo solene. Morrer cercado de amigos e parentes queridos, morrer com calma e tranquilidade em sua própria cama, morrer com as orações de homens piedosos ainda ecoando nos ouvidos, morrer com boa esperança pela graça, na plena certeza da salvação, apoiando-se no Senhor Jesus, sustentado pelas promessas do Evangelho — mesmo assim, digo, morrer dessa forma é algo sério. Mas morrer repentinamente, num instante, no próprio ato do pecado, morrer com plena saúde e força, morrer pela intervenção direta de um Deus irado — isso sim é verdadeiramente terrível. E ainda assim, esse foi o fim da esposa de Ló. Não posso criticar a Ladainha do livro de orações, como alguns fazem, por conservar essa súplica: “Da morte repentina, bom Senhor, livra-nos.”
Esse foi um fim sem esperança para uma alma chegar! Há casos em que se espera, por assim dizer, contra toda esperança, pelas almas daqueles que vemos descer ao túmulo. Tentamos convencer a nós mesmos de que nosso pobre irmão ou irmã falecido pode ter se arrependido para salvação no último momento, e tocado a orla do manto de Cristo na última hora. Lembramos das misericórdias de Deus; recordamos o poder do Espírito; pensamos no caso do ladrão arrependido; sussurramos para nós mesmos que uma obra de salvação pode ter ocorrido mesmo naquele leito de morte, embora a pessoa morrente não tivesse forças para dizer. Mas toda essa esperança se desfaz quando alguém é cortado de forma repentina no próprio ato do pecado. Nem mesmo a caridade consegue dizer algo quando a alma é chamada no meio da maldade, sem um único momento para reflexão ou oração. Esse foi o fim da esposa de Ló. Foi um fim sem esperança. Ela foi para o inferno.
Mas é bom que todos nós atentemos para essas coisas. É bom ser lembrado de que Deus pode punir severamente aqueles que pecam deliberadamente, e que grandes privilégios mal utilizados trazem grande ira sobre a alma. Faraó viu todos os milagres que Moisés realizou — Corá, Datã e Abirão ouviram Deus falando do monte Sinai — Hofni e Fineias eram filhos do sumo sacerdote de Deus — Saul viveu à plena luz do ministério de Samuel — Acabe foi frequentemente advertido pelo profeta Elias — Absalão teve o privilégio de ser um dos filhos de Davi — Belsazar tinha o profeta Daniel bem perto de sua porta — Ananias e Safira se juntaram à Igreja nos dias em que os apóstolos realizavam milagres — Judas Iscariotes foi um companheiro escolhido do próprio Senhor Jesus Cristo. Mas todos eles pecaram abertamente contra a luz e o conhecimento; e todos foram destruídos repentinamente, sem remédio. Não tiveram tempo nem espaço para arrependimento. Como viveram, assim morreram: como estavam, partiram às pressas para se encontrarem com Deus. Foram com todos os seus pecados sobre si, sem perdão, sem renovação, completamente despreparados para o céu. E, mesmo mortos, ainda falam. Eles nos dizem, como a esposa de Ló, que é algo perigoso pecar contra a luz, que Deus odeia o pecado, e que existe um inferno.
Sinto-me compelido a falar abertamente com meus leitores sobre o tema do inferno. Permitam-me aproveitar a oportunidade que o fim da esposa de Ló oferece. Acredito que chegou o tempo em que é dever positivo falar com clareza sobre a realidade e a eternidade do inferno. Uma enxurrada de falsas doutrinas tem se derramado sobre nós recentemente. Homens estão começando a dizer que “Deus é misericordioso demais para punir almas eternamente — que existe um amor de Deus mais profundo até que o próprio inferno — e que toda a humanidade, por mais ímpia e perversa que seja, será salva mais cedo ou mais tarde.” Somos convidados a abandonar os antigos caminhos do cristianismo apostólico. Dizem-nos que as visões de nossos pais sobre o inferno, o diabo e o castigo são ultrapassadas e antiquadas. Devemos abraçar o que se chama de uma “teologia mais amável”, e tratar o inferno como uma fábula pagã ou um espantalho para assustar crianças e tolos. Contra esse tipo de ensino falso, eu, por mim, desejo protestar. Por mais dolorosa, triste e angustiante que seja a controvérsia, não devemos evitá-la ou recusar encarar o assunto de frente. Eu, por minha parte, estou decidido a manter a antiga posição e a afirmar a realidade e a eternidade do inferno.
Acredite, essa não é uma questão meramente especulativa. Não deve ser classificada com disputas sobre liturgias ou governo da Igreja. Não deve ser colocada ao lado de problemas misteriosos, como o significado do templo de Ezequiel ou os símbolos de Apocalipse. É uma questão que está na base de todo o Evangelho. Os atributos morais de Deus, sua justiça, sua santidade, sua pureza, estão todos envolvidos nisso. A necessidade da fé pessoal em Cristo, e da santificação pelo Espírito, estão todas em jogo. Uma vez que a antiga doutrina sobre o inferno seja derrubada, todo o sistema do cristianismo fica abalado, desmontado, desancorado e em desordem.
Acredite, essa questão não é daquelas em que precisamos recorrer a teorias e invenções humanas. A Escritura fala de forma clara e completa sobre o inferno. Considero impossível lidar honestamente com a Bíblia e evitar as conclusões a que ela nos conduz nesse ponto. Se as palavras têm algum significado, existe um lugar como o inferno. Se os textos devem ser interpretados de forma justa, há aqueles que serão lançados nele. Se a linguagem tem qualquer sentido, o inferno é para sempre. Creio que o homem que encontra argumentos para escapar das evidências bíblicas nessa questão chegou a um estado de mente em que a razão é inútil. Da minha parte, parece tão fácil argumentar que não existimos quanto argumentar que a Bíblia não ensina a realidade e a eternidade do inferno.
(a) Estabeleça firmemente em sua mente que a mesma Bíblia que ensina que Deus, em misericórdia e compaixão, enviou Cristo para morrer pelos pecadores, também ensina que Deus odeia o pecado e, por sua própria natureza, deve punir todos que se apegam ao pecado ou recusam a salvação que Ele providenciou. O mesmo capítulo que declara “Deus amou o mundo de tal maneira”, declara também que “a ira de Deus permanece” sobre o descrente (João 3. 16, 36). O mesmo Evangelho que é lançado sobre a terra com a bem-aventurada notícia, “Quem crer e for batizado será salvo”, proclama no mesmo fôlego, “mas quem não crer será condenado” (Marcos 16. 16).
(b) Estabeleça firmemente em sua mente que Deus nos deu prova após prova na Bíblia de que Ele punirá os endurecidos e incrédulos, e que pode vingar-se de seus inimigos assim como mostra misericórdia aos arrependidos. O afogamento do mundo antigo pelo dilúvio — a destruição de Sodoma e Gomorra pelo fogo — o extermínio de Faraó e todo o seu exército no mar Vermelho — o juízo sobre Corá, Datã e Abirão — a completa destruição das sete nações de Canaã — tudo isso ensina a mesma terrível verdade. Todos esses fatos nos foram dados como sinalizadores, advertências e avisos, para que não provoquemos a Deus. Todos têm o propósito de levantar a ponta da cortina que cobre as coisas futuras e nos lembrar de que existe algo chamado ira de Deus. Todos nos dizem claramente que “os ímpios serão lançados no inferno” (Salmo 9. 17).
(c) Estabeleça firmemente em sua mente que o próprio Senhor Jesus Cristo falou de forma mais clara do que qualquer outro sobre a realidade e a eternidade do inferno. A parábola do homem rico e Lázaro contém elementos que deveriam fazer os homens tremerem. Mas ela não está sozinha. Nenhum lábio usou tantas palavras para expressar a terribilidade do inferno quanto os lábios d’Aquele que falou como ninguém jamais falou, e que disse: “A palavra que vocês estão ouvindo não é minha, mas do Pai que me enviou” (João 14. 24). Inferno, fogo do inferno, condenação do inferno, condenação eterna, ressurreição da condenação, fogo eterno, lugar de tormento, destruição, trevas exteriores, o verme que nunca morre, o fogo que não se apaga, o lugar de pranto, lamento e ranger de dentes, castigo eterno — estas são as palavras que o próprio Senhor Jesus Cristo usa. Basta dessa absurda conversa que se ouve hoje em dia, de que os ministros do Evangelho nunca deveriam falar sobre o inferno! Quem fala assim apenas revela sua ignorância ou sua desonestidade. Ninguém pode ler honestamente os quatro Evangelhos e deixar de perceber que quem quiser seguir o exemplo de Cristo precisa falar sobre o inferno.
(d) Estabeleça, por fim, em sua mente, que as ideias consoladoras que a Escritura nos dá sobre o céu se desfazem se negarmos a realidade ou a eternidade do inferno. Não haverá um destino separado, no futuro, para aqueles que morrem ímpios e perversos? Todos os homens, depois da morte, serão misturados em uma só multidão confusa? Nesse caso, o céu não será céu algum! É completamente impossível que duas pessoas habitem juntas em harmonia se não estiverem de acordo. — Haverá um tempo em que o inferno e seu castigo terminarão? Os ímpios, depois de eras de miséria, serão admitidos no céu? Nesse caso, a necessidade da santificação pelo Espírito é descartada e desprezada! Leio que os homens podem ser santificados e preparados para o céu aqui na terra: não leio nada sobre qualquer santificação no inferno. Fora com essas teorias infundadas e antibíblicas! A eternidade do inferno é afirmada na Bíblia com a mesma clareza que a eternidade do céu. Se você permitir que o inferno não é eterno, então também poderá dizer que Deus e o céu não são eternos. A mesma palavra grega usada na expressão “castigo eterno” é a palavra que o Senhor Jesus usa na expressão “vida eterna”, e que Paulo usa na expressão “Deus eterno” (Mateus 25. 46; Romanos 16. 26).
Sei que tudo isso soa terrível aos ouvidos de muitos. Não me surpreendo. Mas a única pergunta que precisamos responder é esta — Isso está de acordo com a Escritura? É verdade? Sustento firmemente que sim, e sustento que os cristãos professos devem ser frequentemente lembrados de que podem se perder e ir para o inferno.
Sei que é fácil negar todo o ensino claro sobre o inferno e torná-lo odioso com termos pejorativos. Muitas vezes ouvi falar de “visões estreitas, ideias antiquadas, teologia do enxofre” e coisas do tipo. Muitas vezes me disseram que o que se precisa hoje em dia são “visões amplas”. Desejo ser tão amplo quanto a Bíblia, nem menos, nem mais. Afirmo que é estreito o teólogo que reduz partes da Bíblia que o coração humano rejeita e descarta qualquer parte do conselho de Deus.
Deus sabe que nunca falo do inferno sem dor e tristeza. Eu ofereceria com alegria a salvação do Evangelho ao maior dos pecadores. Diriam de bom grado ao mais vil e devasso dos homens, em seu leito de morte: “Arrependa-se e creia em Jesus, e você será salvo.” Mas que Deus me livre de ocultar de qualquer ser humano que a Escritura revela um inferno, assim como revela um céu, e que o Evangelho ensina que os homens podem se perder, assim como podem ser salvos. O sentinela que se cala ao ver um incêndio comete negligência grave — o médico que diz que estamos melhorando quando estamos morrendo é um falso amigo; e o ministro que omite o inferno de seus sermões não é nem fiel, nem caridoso.
Onde está a caridade em esconder qualquer parte da verdade de Deus? O amigo mais bondoso é aquele que me revela toda a extensão do meu perigo. Qual é a utilidade de esconder o futuro do impenitente e do ímpio? Certamente, é como ajudar o diabo se não lhes dissermos claramente que “a alma que pecar, essa morrerá”. Quem sabe se a miserável indiferença de muitos batizados não surge justamente disso, por nunca terem sido claramente advertidos sobre o inferno? Quem pode dizer se milhares não se converteriam, se os ministros os exortassem com mais fidelidade a fugir da ira vindoura? Na verdade, temo que muitos de nós sejamos culpados nesse ponto: há entre nós uma sensibilidade doentia que não é a sensibilidade de Cristo. Falamos sobre misericórdia, mas não sobre juízo; pregamos muitos sermões sobre o céu, mas poucos sobre o inferno; deixamo-nos levar pelo miserável medo de sermos considerados “rudes, vulgares e fanáticos”. Esquecemos que quem nos julga é o Senhor, e que o homem que ensina a mesma doutrina que Cristo ensinou não pode estar errado.
Se você deseja ser um cristão saudável e bíblico, suplico que dê ao inferno um lugar na sua teologia. Estabeleça firmemente em sua mente, como princípio fixo, que Deus é um Deus de juízo, assim como de misericórdia; e que os mesmos eternos conselhos que lançaram o fundamento da bem-aventurança do céu também lançaram o fundamento da miséria do inferno. Mantenha claramente diante de você que todos os que morrem sem perdão e sem renovação são totalmente impróprios para a presença de Deus e devem se perder para sempre. Eles não são capazes de desfrutar o céu: não poderiam ser felizes ali. Precisam ir para o seu próprio lugar: e esse lugar é o inferno. — Oh, é algo grandioso, nestes dias de incredulidade, crer em toda a Bíblia!
Se você deseja ser um cristão saudável e bíblico, suplico que tome cuidado com qualquer ministério que não ensine claramente a realidade e a eternidade do inferno. Tal ministério pode ser agradável e reconfortante, mas é muito mais provável que o adormeça do que o conduza a Cristo ou o edifique na fé. É impossível omitir qualquer parte da verdade de Deus sem corromper o todo. É tristemente defeituosa a pregação que se detém exclusivamente nas misericórdias de Deus e nas alegrias do céu, sem jamais apresentar os terrores do Senhor e as misérias do inferno. Pode ser popular, mas não é bíblica: pode divertir e agradar, mas não salvará. Dê-me a pregação que não omite nada do que Deus revelou. Você pode chamá-la de severa e dura; pode dizer que assustar as pessoas não é o caminho para o bem delas. Mas você está se esquecendo de que o grande objetivo do Evangelho é persuadir os homens a “fugirem da ira vindoura”, e que é inútil esperar que fujam, a menos que tenham medo. Seria muito bom para muitos cristãos professos se eles tivessem mais temor por suas almas do que têm agora!
Se você deseja ser um cristão saudável, pense com frequência sobre qual será o seu fim. Será felicidade, ou será miséria? Será a morte do “justo”, ou será uma morte sem esperança, como a da esposa de Ló? Você não pode viver para sempre: haverá um fim um dia. O último sermão será ouvido um dia; a última oração será feita um dia; o último capítulo da Bíblia será lido um dia — desejar, querer, esperar, planejar, decidir, duvidar, hesitar — tudo isso acabará por fim. Você terá de deixar este mundo e comparecer diante de um Deus santo. Oh, que você tenha sabedoria! Oh, que você considere o seu fim!
Você não pode brincar para sempre: chegará o momento em que terá de ser sério. Você não pode adiar para sempre as questões da sua alma: virá o dia em que terá de prestar contas a Deus. Você não pode estar sempre cantando, dançando, comendo, bebendo, se vestindo, lendo, rindo, brincando, tramando, planejando e ganhando dinheiro. Os insetos de verão não podem se divertir ao sol o tempo todo; a fria noite chega por fim e interrompe sua diversão para sempre. Assim será com você. Pode adiar a religião agora, e recusar o conselho dos ministros de Deus: mas o frescor do dia está se aproximando, quando Deus descerá para falar com você. E qual será o seu fim? Será um fim sem esperança, como o da esposa de Ló?
Suplico a você, pelas misericórdias de Deus, que encare essa pergunta com seriedade. Suplico que não silencie a consciência com esperanças vagas na misericórdia de Deus, enquanto seu coração se apega ao mundo. Imploro que não afogue suas convicções com fantasias infantis sobre o amor de Deus, enquanto seus caminhos e hábitos diários mostram claramente que “o amor do Pai não está em você”. Há misericórdia em Deus, como um rio — mas é para o crente arrependido em Cristo Jesus. Há um amor de Deus pelos pecadores que é indizível e insondável — mas é para aqueles que “ouvem a voz de Cristo e O seguem”. Busque ter parte nesse amor. Abandone todo pecado conhecido; separe-se do mundo com coragem; clame poderosamente a Deus em oração; lance-se totalmente e sem reservas sobre o Senhor Jesus para o tempo e para a eternidade; abandone todo peso. Não se apegue a nada, por mais caro que seja, que interfira na salvação da sua alma; renuncie a tudo, por mais precioso que seja, que se coloque entre você e o céu. Este velho mundo naufragado está afundando rapidamente sob seus pés: a única coisa necessária é ter um lugar no barco salva-vidas e chegar seguro à costa. Esforce-se para tornar firme sua vocação e eleição. Aconteça o que acontecer com sua casa e seus bens, certifique-se de garantir o céu. Oh, é infinitamente melhor ser zombado e considerado extremo neste mundo do que descer ao inferno do meio da congregação e terminar como a esposa de Ló!
E agora, permita-me concluir este texto oferecendo a todos que o leem algumas perguntas para gravar o assunto em suas consciências. Você viu a história da esposa de Ló — seus privilégios, seu pecado e seu fim. Foi advertido sobre a inutilidade dos privilégios sem o dom do Espírito Santo, sobre o perigo do mundanismo e sobre a realidade do inferno. Permita-me encerrar com alguns apelos diretos ao seu próprio coração. Em um tempo de muita luz, conhecimento e profissão de fé, desejo erguer um farol para preservar almas do naufrágio. Gostaria de fixar uma bóia no canal de todos os navegantes espirituais e escrever nela: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(a) Você é negligente quanto à segunda vinda de Cristo? Infelizmente, muitos são! Vivem como os homens de Sodoma, e os homens do tempo de Noé: comem, bebem, plantam, constroem, casam-se, dão-se em casamento e se comportam como se Cristo nunca fosse voltar. Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(b) Você é morno e frio na sua vida cristã? Infelizmente, muitos são! Tentam servir a dois senhores: esforçam-se para agradar tanto a Deus quanto às riquezas. Lutam para ser um tipo de morcego espiritual, nem uma coisa nem outra: não totalmente cristãos dedicados, mas também não totalmente mundanos. Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(c) Você está indeciso entre duas opiniões, inclinado a voltar ao mundo? Infelizmente, muitos estão! Têm medo da cruz: secretamente rejeitam o incômodo e o desprezo que acompanham a fé decidida. Estão cansados do deserto e do maná, e gostariam de voltar ao Egito, se pudessem. Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(d) Você está secretamente alimentando algum pecado dominante? Infelizmente, muitos estão! Avançam bastante na profissão de fé; fazem muitas coisas corretas e se parecem muito com o povo de Deus. Mas sempre há algum hábito pecaminoso querido, que não conseguem arrancar do coração. O mundanismo oculto, ou a cobiça, ou a luxúria, estão ligados a eles como a própria pele. Estão dispostos a ver todos os seus ídolos destruídos, menos esse. Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(e) Você está brincando com pecados pequenos? Infelizmente, muitos estão! Defendem as grandes doutrinas essenciais do Evangelho. Mantêm-se afastados de toda devassidão grosseira ou violação aberta da lei de Deus; mas são dolorosamente negligentes com pequenas incoerências, e estão sempre prontos para justificar essas falhas. “É apenas um pouco de mau humor, ou um pouco de leviandade, ou um pouco de descuido, ou um pouco de esquecimento” — dizem: “Deus não se importa com essas pequenas coisas. Nenhum de nós é perfeito: Deus nunca exigirá isso.” — Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(f) Você está confiando em privilégios religiosos? Infelizmente, muitos fazem isso! Aproveitam a oportunidade de ouvir o Evangelho sendo pregado regularmente e de participar de muitas ordenanças e meios de graça: e então se acomodam. Parecem estar “ricos, e abastados, e de nada terem falta” (Apocalipse 3. 17); enquanto não têm fé, nem graça, nem espiritualidade, nem preparo para o céu. Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(g) Você está confiando no seu conhecimento religioso? Infelizmente, muitos fazem isso! Não são ignorantes como outros homens: sabem a diferença entre doutrina verdadeira e falsa. Sabem argumentar, sabem raciocinar, sabem debater, sabem citar versículos; mas durante todo esse tempo não foram convertidos, e ainda estão mortos em delitos e pecados. Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(h) Você faz alguma profissão de fé, mas ainda está apegado ao mundo? Infelizmente, muitos fazem isso! Desejam ser vistos como cristãos. Gostam da reputação de pessoas sérias, equilibradas, corretas, assíduas à igreja; mas, ao mesmo tempo, suas roupas, seus gostos, suas companhias, suas diversões mostram claramente que pertencem ao mundo. Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(i) Você está confiando que terá arrependimento no leito de morte? Infelizmente, muitos fazem isso! Sabem que não são o que deveriam ser: ainda não nasceram de novo, e não estão prontos para morrer. Mas se iludem, pensando que, quando a última enfermidade vier, terão tempo para se arrepender, agarrar-se a Cristo e deixar o mundo perdoados, santificados e preparados para o céu. Esquecem que as pessoas muitas vezes morrem de repente, e que geralmente morrem como viveram. Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
(j) Você pertence a uma congregação evangélica? Muitos pertencem e, infelizmente, não passam disso! Ouvem a verdade domingo após domingo e continuam tão duros quanto uma pedra de moinho. Sermão após sermão ressoa em seus ouvidos. Mês após mês são convidados a se arrepender, a crer, a vir a Cristo e a ser “salvos”. Ano após ano se passa, e não mudam. Mantêm seu lugar sob os ensinos de um pregador favorito, e também mantêm seus pecados favoritos. Se você é um deles, digo a você hoje: Cuidado: “Lembre-se da esposa de Ló.”
Oh, que estas palavras solenes de nosso Senhor Jesus Cristo fiquem profundamente gravadas em todos os nossos corações! Que nos despertem quando estivermos sonolentos — nos revigorem quando estivermos mortos — nos afiem quando estivermos apáticos — nos aqueçam quando estivermos frios! Que sirvam de estímulo para nos acelerar quando estivermos caindo para trás, e de freio para nos conter quando estivermos nos desviando! Que sejam um escudo para nos defender quando Satanás lançar uma tentação sutil ao nosso coração; e uma espada para lutar quando ele disser com ousadia: “Abandone Cristo, volte ao mundo e siga-me!” Oh, que possamos dizer, nesses momentos de provação: “Alma, lembre-se do alerta do seu Salvador! Alma, alma, você se esqueceu das palavras dEle? Alma, alma, ‘LEMBRE-SE DA ESPOSA DE LÓ!’”
~
J. C. Ryle
Holiness.
Notas:
[1] "Lembre-se do Dr. Dodd! Eu mesmo o ouvi dizer ao seu próprio rebanho, a quem ele estava instruindo em sua casa, que foi obrigado a abandonar aquele método de ajudar suas almas, porque isso o expunha a muitas reprovações. Ele o abandonou e caiu de uma concessão a outra com sua natureza corrupta; e sob que reprovação ele morreu!' (Ele foi enforcado por falsificação.) Venn’s Life and Letters, p. 238. Edit. 1853."