Que Deus não é o autor do pecado
03.setembro.2024
Que Deus não é o autor do pecado
Em várias ocasiões, surgiram grandes tumultos na Igreja sobre a causa do pecado. Por isso, é necessário que as mentes piedosas sejam firmadas em testemunhos seguros que mostram que o pecado não surgiu e não surge da vontade de Deus, mas exclusivamente e simplesmente da vontade do Diabo e do homem.
Em Gênesis 1, está escrito: "Deus viu tudo o que tinha feito, e era muito bom." Isto é, era agradável a Deus, corretamente ordenado e obediente a Deus. O termo "bom" aqui não é usado à toa; a expressão "muito bom" se aplica a todas as criaturas, mas especialmente destaca a excelência da natureza humana, que era muito boa, ou seja, muito agradável a Deus, dotada de dons que superavam em muito as capacidades presentes, muito ordenada e perfeitamente obediente a Deus. Essa expressão nos lembra da grande dignidade da qual fomos excluídos.
Antigamente, nas Escolas, se dizia que a natureza humana, após a queda, foi despojada dos dons gratuitos, como a graça e o amor, cuja privação atraiu a ira de Deus. Além disso, a natureza foi ferida em suas qualidades naturais, isto é, na mente, vontade e coração, onde as feridas são horrendas. Essa distinção foi retirada de Santo Agostinho. No Salmo 5 está escrito: "Tu não és um Deus que se agrada da iniquidade."
Os juristas chamam os principais testemunhos de "sedes das matérias." Podemos, então, dizer que o Salmo 5 é a sede da matéria que estamos tratando sobre a causa do pecado, pois não há testemunho mais claro para refutar os maniqueus e outros semelhantes do que este salmo. Ele não apenas afirma o que já citamos, mas também reforça essa sentença de forma retórica: "O maligno não habitará contigo; os injustos não permanecerão diante dos teus olhos. Odeias todos os que praticam a iniquidade; destruirás os que falam mentiras. O Senhor abomina o homem sanguinário e enganador."
Em Zacarias 8 está escrito: "Não imagineis o mal contra o próximo, nem ameis o juramento falso. Pois todas essas coisas eu odeio, diz o Senhor." E mesmo que alguns tentem eludir esses dois testemunhos com argumentos fúteis, é certo que eles são firmes. A vontade de Deus é boa e justa, e Ele deseja esta ordem, que é expressa na Lei, de tal modo que é impossível para Ele querer, fazer, ajudar ou aprovar o contrário.
É impossível que haja vontades contraditórias em Deus. Se alguém atribui vontades contraditórias a Deus, ele, ao mesmo tempo, atribui a Deus a mentira, o que é horrível de dizer ou pensar. A verdade é a congruência entre as opiniões, o discurso e os atos externos com a realidade. Portanto, se Deus nos mostra uma coisa externamente, mas internamente deseja outra, segue-se que Ele não é verdadeiro. Não digo isso para insultar Deus, mas para honrá-Lo. E esses são argumentos muito fortes, baseados na impossibilidade. Lutero fala de forma contundente: "Se Deus me engana, então estou enganado." Mas é impossível que Deus me engane. Portanto, não serei enganado. Essa é uma expressão cheia de convicção.
Aurelius Victor escreve sobre o imperador Augusto que ele era extremamente severo na punição da luxúria, embora ele mesmo fosse indulgente com esse vício, como é o costume de homens que, ao punir os vícios nos outros, nos quais eles mesmos se entregam com veemência, tornam-se mais rigorosos. Não pensemos em Deus como tal legislador. Assim como essas proposições são verdadeiras, necessárias, eternas e imutáveis — Deus é, Deus é sábio, Deus é casto —, assim também é eterno e imutável que Deus se ira contra as luxúrias de Nero.
Na Primeira Epístola de João 3 está escrito: "Aquele que comete pecado é do Diabo," ou seja, o Diabo é o autor do pecado. Pois, embora a natureza dos espíritos e dos homens tenha sido criada por Deus de tal forma que fosse agradável a Deus, ordenada corretamente e obediente a Deus, a vontade do Diabo se desviou livremente de Deus. Esse desvio é pecado, pois é uma desobediência que se opõe à Lei de Deus e é uma negligência, desprezo ou ódio a Deus. Depois disso, o Diabo também impulsionou as vontades humanas para que se afastassem de Deus.
Muitos piedosos, ao lerem esta passagem, ficam muito preocupados e são atormentados por uma dor particular por causa de seus pecados. Eles argumentam assim: "Aquele que comete pecado é do Diabo; eu peco diariamente. Portanto, sou do Diabo." Eu respondo à premissa maior: João, no capítulo 3 de sua Epístola Canônica, não fala de todo pecado em geral, como mostra o contexto do discurso, mas de um certo tipo de pecado. Ele explica essa sentença, como citado, pelo exemplo de Caim e do Diabo. Portanto, João testifica que está falando da queda voluntária contra a consciência, quando o homem, sabendo e querendo, persevera em delitos contra a consciência. Nesse caso, ele se aproxima da natureza do Diabo e gradualmente se torna um epicurista, desprezador ou inimigo de Deus. Saul teve um pecado assim, que não pôde ser apaziguado de forma alguma para buscar a paz com Davi. Portanto, aqueles que perseveram em delitos contra a consciência e não lamentam imediatamente seus pecados, mas tecem uma longa trama de pecados, como o Diabo costuma fazer ao entrelaçar e construir uma infinidade de pecados a partir de um só, saibam que estão sendo acusados e aterrorizados pelo mais sério sermão de João: "Aquele que comete pecado" — isto é, contra a consciência e persiste nele — "é do Diabo." Pois tal pessoa peca à maneira do Diabo e é um imitador do Diabo, não por natureza, mas por imitação. Aqueles, porém, que carregam o pecado original ou que caem, mas logo se levantam, não devem aplicar a si mesmos as palavras de João. Ele não diz "Quem peca é do Diabo," mas "Quem comete pecado," isto é, à maneira do Diabo.
1 João 2: A concupiscência da carne não é de Deus, mas do mundo
De acordo com Aristóteles, o "mundo" é uma estrutura, uma ordem, uma sequência ou uma espécie de escada de corpos celestiais e inferiores, disposta com arte. Agora, pergunto: o pecado surge desse sistema? De modo algum. O céu, a terra, o mar não são a causa do pecado, mas o "mundo" na fraseologia de João significa a multidão da humanidade que não se volta para Deus. Cristo também usa essa expressão em João 3: "Deus amou o mundo de tal maneira...", ou seja, as pessoas que ainda não se converteram a Ele, pessoas que estão afastadas de Deus e erram e pecam de várias maneiras.
Essa afirmação claramente e expressivamente afirma que o pecado não se origina em Deus. Podemos também adicionar aqui Romanos 5: "Por um só homem entrou o pecado no mundo."
Há uma metáfora nesta passagem. A primeira queda de Adão e Eva foi uma grande porta pela qual o pecado e a morte penetraram em toda a humanidade. Nenhum orador poderia dizer algo mais eloquente ou escrever de forma mais grandiosa do que quando o discurso de Paulo começa a ganhar força. Verdadeiramente, ele é como um trovão e um relâmpago, deixando um impacto duradouro nas almas humanas, como se dizia sobre Péricles.
Mas o testemunho mais ilustre é a declaração encontrada em João 8: "Quando o Diabo fala mentira, fala do que lhe é próprio, pois é mentiroso e pai da mentira." Quando ele diz "do que lhe é próprio", distingue as coisas criadas das não criadas. A natureza do espírito é algo criado por Deus, mas, além disso, há algo próprio do Diabo, ou seja, algo que não foi criado por Deus: a aversão a Deus, que é a desobediência que luta contra Deus. E Cristo claramente diz que o Diabo é o pai (isto é, arquiteto, artífice, autor, mestre) da mentira, e que o pecado não se originou de Deus.
Cristo não diz que o Diabo foi criado em sua maldade e perversidade, mas na verdade, ou seja, na verdadeira justiça e santidade. Se ele tivesse perseverado, assim como os anjos bons, não haveria vestígio de pecado nem entre os demônios (ou espíritos malignos) nem na humanidade. Mas como o Diabo se desviou de Deus, e como Cristo diz, "não permaneceu na verdade", por isso a natureza dos espíritos foi contaminada pelo pecado. E isso foi a causa do pecado que se espalhou para toda a humanidade.
O pecado é propriamente a aversão de uma natureza inteligente a Deus, lutando contra a Lei de Deus.
Por isso, Cristo atribui ao Diabo esses dois epítetos: "O Diabo é mentiroso e homicida." A resposta é simples. Considere o que está escrito em Zacarias 8: "Amai a verdade e a paz." Neste versículo, "verdade" significa todas as virtudes da primeira tábua da Lei, como, por exemplo, o verdadeiro conhecimento e invocação de Deus, e a verdadeira adoração que vem do coração, da língua e dos atos externos. "Paz", neste contexto profético, abrange todas as virtudes da segunda tábua da Lei, como o amor ao próximo e todas as obrigações necessárias para sustentar a sociedade humana.
Assim como os anjos bons obedecem a este mandamento, amando a verdade e a paz, e possuem todas as virtudes das duas tábuas, assim também o inimigo de Deus, o Diabo, é mentiroso e homicida, violando de forma atroz a primeira e a segunda tábua da Lei. Pois, contra a primeira tábua, ele espalha blasfêmias, heresias, ídolos e outras mil abominações de opiniões e cultos, pelos quais Deus é ofendido. Contra a segunda tábua, ele promove homicídios, adultérios, furtos, mentiras e outras mil transgressões.
Essas coisas devem ser consideradas, para que, quando o Diabo andar ao redor da humanidade como um leão rugindo, buscando a quem possa devorar, invoquemos ardentemente a Deus e peçamos ao Filho de Deus que destrua as obras do Diabo: a mentira e o homicídio, o pecado e a morte.
Não há contradição entre afirmar que a natureza humana foi criada por Deus e que o pecado não é originário de Deus, porque o pecado é uma horrível destruição [confusão, perturbação] da obra e ordem divinas, algo que verdadeiramente desagrada a Deus, que nunca quis que Sua obra fosse violada. Estas questões devem ser cuidadosamente consideradas, e a simples verdade que expus deve ser mantida. Devemos aprender a acusar a nós mesmos, e não a Deus, e pedir a Deus a solução para nossos males. Como está dito em Oséias 13: "A tua destruição vem de ti, ó Israel; somente em mim está o teu auxílio."
Quanto ao que alguns objetam, citando passagens como: "Eu endurecerei o coração de Faraó", e semelhantes, a explicação correta e verdadeira é que essas passagens [como em Êxodo 8 e outras frequentemente] se referem à permissão, deixando que o coração seja endurecido. A fraseologia hebraica não exige que essas palavras sejam interpretadas de maneira mais rígida, assim como quando dizemos: "Não nos induzas em tentação", o que significa: "Não nos deixes ser induzidos ou, sendo induzidos, perecer." Um testemunho dessa explicação é dado por Agostinho em seu livro *De bono perseverantiae*, capítulo 6: "Nada acontece a não ser que Deus o faça ou permita que aconteça." Portanto, ao dizer "Não nos induzas em tentação", o que estamos dizendo, senão "Não nos deixes ser levados à tentação"? Pois Deus não tenta a ninguém, ou seja, com uma tentação nociva.
Alguém poderia objetar que a narrativa em Gênesis e no livro de Jó atesta que Abraão e Jó foram tentados por Deus. Portanto, Deus é o autor da tentação, e consequentemente, a petição na Oração do Senhor "Não nos induzas em tentação" seria em vão. Respondo: a tentação de Deus e a do Diabo diferem em suas causas impulsivas e finais. A causa impulsiva em Deus é o amor pela Igreja; em Diabo, é o ódio implacável contra Deus e contra a Igreja. Quem Deus ama, Ele tenta. Quem o Diabo odeia, ele também tenta; e o Diabo odeia todos os seres humanos. Por isso, ele ataca cada indivíduo e tenta derrotá-los com seus artifícios malignos. A causa final da tentação divina é uma exploração salutar, isto é, um teste pelo qual os homens se tornam conhecidos para si mesmos e para a Igreja. Pois ninguém, como diz Agostinho, se conhece sem um exame de prova.
Por que, então, são estabelecidos os exames? Por uma razão boa e útil. Nada é mais proveitoso para a modéstia dos estudiosos do que os exames. Muitos têm uma convicção infantil, pensando que sabem muito, quando na verdade sabem pouco ou nada. O objetivo da tentação diabólica é a "apoleia", isto é, a destruição universal da alma e do corpo. Quando Deus tenta Abraão ou Jó, Ele não o faz movido pelo ódio, mas sim pelo amor. Pois Deus não tenta ninguém a menos que seja altamente amado e querido. Mas por que razão, ou com que objetivo, Deus nos tenta? Para nos testar. Contudo, Deus é "agnostos", o conhecedor dos corações, portanto Ele não precisa dessa exploração. Respondo: isso seria um engano, considerando algo como causa quando não é. Embora Deus saiba todas as coisas, perscrutando profundamente os segredos do coração humano, essas provas e testes são estabelecidos por duas razões. Primeiro, para que o homem aprenda a reconhecer sua própria fraqueza. Em segundo lugar, para que a piedade e a virtude do homem santo se tornem mais visíveis diante dos outros. Sobre esta última causa, Jerônimo diz na narração do primeiro capítulo de Jó: "Essas coisas aconteceram a Jó para que as virtudes deste homem, que Deus via interiormente, se tornassem conhecidas externamente."
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Victorin Strigel, Loci Theologici (Loci theologici viri clariss. D. Vitória. Strigeli. Quibus Loci communes reuerendi viri, D. Philippi Melanthonis, illustrantur, & velut corpus doctrinae Christianae integrum proponitur), pg. 284-289, 1582.