A questão do aborto é, sem dúvida, um dos temas mais complexos e delicados para um cristão enfrentar, pois exige a integração de perspectivas teológicas, científicas e jurídicas, além de considerações filosóficas e éticas. Para o cristão, a defesa da vida é um princípio fundamental, enraizado na crença de que cada ser humano é criado à imagem de Deus, desde o momento da concepção.
O aborto pode ser definido como a interrupção intencional ou não intencional de uma gravidez, resultando na remoção ou expulsão de um embrião ou feto. Quando espontâneo, ocorre sem intervenção deliberada, geralmente antes da 24ª semana de gestação, sendo classificado como natimorto após esse período ou como parto prematuro até a 37ª semana. O aborto induzido, por outro lado, é um ato intencional que pode ocorrer em qualquer estágio da gravidez. Estatísticas globais indicam que, anualmente, cerca de 205 milhões de gestações ocorrem no mundo, das quais mais de um terço não são planejadas, e aproximadamente um quinto termina em aborto induzido, frequentemente associado a gestações indesejadas.
Os procedimentos de aborto variam em complexidade e riscos. O aborto químico, realizado com medicamentos como Mifepristona e Misoprostol, é uma opção não cirúrgica que provoca a interrupção da gravidez, mas pode causar efeitos colaterais como dores abdominais, náuseas, sangramentos intensos e, em casos raros, complicações graves como a não identificação de uma gravidez ectópica. Métodos cirúrgicos, como a sucção e aspiração (D&C), envolvem a remoção do feto por meio de um cateter, enquanto a dilatação e evacuação (D&E) requer a dilatação do colo do útero e o desmembramento do feto. A indução, por sua vez, utiliza substâncias para causar a morte fetal e induzir o parto. Todos esses procedimentos apresentam riscos significativos, incluindo perfuração de órgãos, infecções, hemorragias e complicações em futuras gestações, além do impacto psicológico e espiritual na mulher.
Historicamente, o aborto esteve presente em diversas civilizações, frequentemente por meio de ervas ou práticas rudimentares, mas sua aceitação variava. Na Assíria, por exemplo, era punido com pena de morte, enquanto em períodos de escassez no Japão ou entre os maoris da Nova Zelândia, era tolerado. No mundo greco-romano, a prática era comum, mas os cristãos primitivos se opuseram veementemente ao aborto. Textos como a Didaquê, do século I, e escritos de Clemente de Alexandria, Tertuliano e Agostinho condenavam a interrupção da gravidez, considerando-a um atentado contra a vida humana. Calvino e Lutero, figuras centrais da Reforma, também defenderam a sacralidade da vida desde a concepção, enxergando o aborto como uma violação da obra divina.
A questão da tolerância do aborto nos primeiros três meses de gestação é frequentemente debatida, mas a perspectiva cristã tradicional, baseada na crença de que a vida começa na concepção, rejeita tal prática. A ciência moderna reforça essa visão ao demonstrar que, desde a fertilização, o embrião possui um código genético único e inicia um processo contínuo de desenvolvimento. Para o cristão, a dignidade do ser humano não depende de seu estágio de desenvolvimento, mas de sua criação à imagem de Deus, conforme passagens bíblicas como Salmo 139 e Jeremias 1.
No âmbito jurídico, o século XIX marcou o início de legislações antiaborto, impulsionadas pelo avanço da medicina e pela influência de associações como a Associação Médica Americana, que, liderada por figuras como Horatio Storer, defendeu a proibição do aborto nos Estados Unidos. Documentos internacionais, como o Juramento de Hipócrates, a Declaração de Genebra e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, reforçam a proteção à vida desde a concepção. Contudo, movimentos de liberalização, iniciados no século XIX e intensificados no século XX, argumentaram a favor do direito da mulher sobre seu corpo, muitas vezes com um viés eugenista, como defendido por figuras como Margaret Sanger. Essa perspectiva, associada a ideias de controle populacional, influenciou políticas em diversos países, incluindo a legalização do aborto na URSS em 1920.
A eugenia, com sua ênfase na “melhoria” da população, revelou-se problemática, especialmente quando analisada sob a ótica cristã, que rejeita a ideia de que a dignidade humana possa ser medida por critérios como inteligência ou aptidão física. A experiência de Fátima Shabat, uma mulher negra que, em 1971, percebeu um tratamento desigual em uma clínica de saúde pública, ilustra como o aborto pode ser instrumentalizado em contextos de desigualdade racial. Nos Estados Unidos, dados de 2004 mostram taxas de aborto significativamente mais altas entre mulheres negras, sugerindo um impacto desproporcional em comunidades minoritárias, o que levanta questões éticas sobre justiça e igualdade.
No contexto religioso, enquanto algumas denominações protestantes, como a Igreja Presbiteriana e a Igreja Evangélica Luterana na América, adotaram posturas favoráveis ao aborto, igrejas pentecostais, como a Igreja de Deus em Cristo, mantêm uma forte oposição, exceto em casos de risco iminente à vida da mãe. Essa divergência levanta a questão sobre o papel das igrejas pentecostais na luta contra o aborto. Diferentemente dos católicos, que historicamente se mobilizaram de forma mais visível, os pentecostais poderiam intensificar seu engajamento em políticas públicas, guiados pela convicção de que a defesa da vida é uma expressão de fidelidade a Deus.
A Agenda 2030 da ONU, embora promova a redução da mortalidade materna, não menciona explicitamente a proteção da vida do nascituro, o que tem gerado críticas entre aqueles que defendem a santidade da vida em todas as fases. Países como a Polônia, que restringiram o aborto, demonstram que é possível alcançar baixas taxas de mortalidade materna sem recorrer à prática, desafiando argumentos que associam a legalização do aborto à saúde da mulher.
A Bíblia oferece uma base sólida para a visão cristã sobre o aborto. Passagens como Salmo 127 e Êxodo 21 destacam o valor dos filhos e a responsabilidade de proteger a vida, enquanto Êxodo 20 reforça o mandamento de não matar. A ciência, quando vista como um meio de compreender a criação divina, confirma que a vida humana começa na fertilização, reforçando a convicção de que embriões e fetos possuem dignidade inalienável.
A igreja, como corpo de Cristo, é chamada a desempenhar um papel ativo nas políticas públicas, defendendo a justiça e a vida com sabedoria, como descrito em Daniel 1. A fé cristã não se limita ao bem-estar econômico ou à sobrevivência dos “mais aptos”, mas aponta para um propósito maior: glorificar a Deus por meio da proteção de sua criação. Assim, a ciência, longe de ser uma adversária, pode ser uma aliada na revelação da maravilha da vida humana, desde seu início no ventre materno.