30.junho.2025
Sentenças, Livro 4 - Livro I, Distinção 1
Capítulo 1 - Todo ensinamento trata ou das coisas ou dos sinais.
Toda doutrina trata de coisas ou de sinais. Ao considerar repetidas vezes e com diligente investigação o conteúdo da Lei antiga e da nova, com a graça de Deus, percebemos que a Sagrada Escritura se ocupa principalmente das coisas ou dos sinais. Pois, como afirma o eminente doutor Agostinho no livro Sobre a Doutrina Cristã: "Toda doutrina é sobre coisas ou sobre sinais. Mas também se aprende sobre as coisas por meio dos sinais. Propriamente, aqui se chamam coisas aquelas que não são empregadas para significar algo; sinais, por outro lado, são aqueles cujo uso está em significar algo". – Desses sinais, alguns existem apenas para significar, não para justificar, ou seja, não os utilizamos senão para significar algo, como certos sacramentos legais; outros, além de significarem, comunicam algo que ajuda interiormente, como os sacramentos evangélicos. – "Por isso, entende-se claramente o que aqui se chama sinais: aquelas coisas, isto é, que são empregadas para significar algo. Todo sinal, portanto, é também uma coisa: pois o que não é coisa alguma – como diz o mesmo Agostinho – absolutamente nada é; por outro lado, nem toda coisa é sinal", porque não é usada para significar algo.
E quando a especulação teológica se volta com zelo e humildade para essas questões, percebe que a Sagrada Escritura mantém a forma prescrita na doutrina.
Sobre essas coisas, portanto, devemos tratar, desejando, com a ajuda de Deus, abrir o caminho para compreender de algum modo as coisas divinas; e "falaremos primeiro sobre as coisas, depois sobre os sinais".
Capítulo 2 - Das coisas que devem ser desfrutadas ou usadas, e daquelas que desfrutam ou usam.
Trata das coisas em geral. "Nas coisas – como diz o mesmo Agostinho – deve-se considerar que algumas são para serem desfrutadas, outras para serem usadas, e outras ainda desfrutam e usam. Aquelas que devem ser desfrutadas nos tornam felizes; as que devem ser usadas nos ajudam e sustentam na direção da felicidade, para que possamos alcançar e aderir às coisas que nos tornam felizes".
Das coisas que desfrutam e usam. "As coisas que desfrutam e usam somos nós, colocados, por assim dizer, entre ambas" – também os Anjos e os Santos.
O que é desfrutar e usar. "Desfrutar é aderir com amor a alguma coisa por ela mesma; usar, por outro lado, é referir aquilo que é usado à obtenção daquilo que deve ser desfrutado: do contrário, é abusar, não usar, pois o uso ilícito deve ser chamado de abuso".
Das coisas que devem ser desfrutadas. "As coisas, portanto, que devem ser desfrutadas são o Pai, o Filho e o Espírito Santo. No entanto, essa mesma Trindade é uma única realidade suprema e comum a todos os que a desfrutam, se é que se deve chamá-La de realidade e não de causa de todas as realidades – se é que também se pode chamá-La de causa. Pois dificilmente se encontra um nome que corresponda a tamanha excelência, a não ser que seja melhor chamá-La simplesmente de Trindade, este único Deus".
Das coisas que devem ser usadas. "As coisas que devem ser usadas são o mundo e o que foi criado nele. Por isso, Agostinho afirma no mesmo livro: 'Deve-se usar deste mundo, não desfrutar dele, para que, por meio das coisas visíveis criadas, se contemplem os atributos invisíveis de Deus, ou seja, que das coisas temporais se alcance o eterno'. – Ainda no mesmo lugar: 'De todas as coisas, apenas aquelas que são eternas e imutáveis são para serem desfrutadas; as demais devem ser usadas para se alcançar o desfrute daquelas'. Por isso, Agostinho, no décimo livro Sobre a Trindade, diz: 'Desfrutamos daquilo que conhecemos e que, por si só, satisfaz e repousa a vontade; usamos daquilo que referimos a algo que deve ser desfrutado'."
Capítulo 3 - O que significa desfrutar ou usar.
Também, sobre qual é a diferença entre desfrutar e usar, de modo diferente do que foi dito acima. É necessário observar que o mesmo Agostinho, no décimo livro Sobre a Trindade, entendendo de outro modo os termos "usar" e "desfrutar", afirma o seguinte: "Usar é assumir algo no domínio da vontade; desfrutar, por outro lado, é usar com alegria, não mais com esperança, mas já na posse da realidade. Por isso, todo aquele que desfruta, usa: pois assume algo no domínio da vontade com o fim da alegria; porém, nem todo aquele que usa também desfruta, se o que assumiu no domínio da vontade foi desejado não por si mesmo, mas por causa de outra coisa". – E observa-se que Agostinho parece dizer que só desfrutam aqueles que se alegram na realidade, e não mais na esperança; e assim, nesta vida, não parecemos desfrutar, mas apenas usar, pois nos alegramos na esperança, embora tenha sido dito acima que desfrutar é "aderir com amor a alguma coisa por ela mesma", do modo como também aqui muitos se apegam a Deus.
Determinação daquilo que parece contraditório. Essas afirmações, que parecem se contradizer, podemos esclarecer da seguinte maneira: dizemos que tanto aqui quanto no futuro se desfruta, mas no futuro de modo próprio, perfeito e pleno, quando veremos face a face Aquele de quem desfrutamos; aqui, porém, enquanto caminhamos na esperança, de fato desfrutamos, mas não plenamente. Por isso, no décimo livro Sobre a Trindade se lê: "Desfrutamos daquilo que conhecemos e em que repousa a vontade". E o mesmo autor, em Sobre a Doutrina Cristã, afirma: "Os Anjos já são bem-aventurados por desfrutarem d’Aquele de quem nós também desejamos desfrutar; e, na medida em que nesta vida já desfrutamos, ainda que por espelho ou enigma, tanto mais suportamos nossa peregrinação com tolerância e mais ardentemente desejamos que ela termine". – Outra determinação. Também se pode dizer que quem desfruta mesmo nesta vida não tem apenas a alegria da esperança, mas também a da realidade, pois já se alegra naquilo que ama, e assim já possui, de certo modo, a realidade.
Conclui-se, então, que devemos desfrutar de Deus, e não apenas usar. "Pois – como diz Agostinho – você desfruta daquilo que o torna feliz e no qual coloca sua esperança, a fim de alcançá-Lo". Sobre isso, o mesmo autor afirma em Sobre a Doutrina Cristã: "Dizemos que desfrutamos daquilo que amamos por si mesmo, e que só devemos desfrutar d’Aquele que nos faz felizes; das demais coisas, deve-se apenas usar". – Com frequência, no entanto, "diz-se que se desfruta quando se usa com alegria. Pois, quando aquilo que se ama está presente, também traz consigo alegria. Se, no entanto, você passar por isso e o referir àquilo onde deve permanecer, estará usando, e de maneira imprópria se dirá que desfruta. Mas, se você se apegar e permanecer, estabelecendo aí o fim da sua alegria, então verdadeiramente e propriamente se deve dizer que você desfruta: o que só deve ser feito na Trindade, isto é, no bem supremo e imutável".
Se os seres humanos devem ser usados ou desfrutados. Como os seres humanos, que desfrutam e usam outras coisas, também são coisas, pergunta-se "se devemos desfrutar deles, usá-los, ou ambos". A essa questão Agostinho responde assim, em Sobre a Doutrina Cristã: "Se o ser humano deve ser amado por si mesmo, nós o desfrutamos; se por outra razão, nós o usamos. Mas parece-me que deve ser amado por outra razão. Pois aquilo que deve ser amado por si mesmo constitui a vida feliz, cuja esperança, neste tempo, nos consola. No ser humano, porém, não se deve colocar a esperança, pois ‘maldito’ é quem faz isso. Portanto, se você observar com atenção, nem mesmo a si próprio alguém deve desfrutar, porque não deve amar-se por si mesmo, mas por causa d’Aquele de quem se deve desfrutar".
No entanto, parece contrário a isso o que o Apóstolo diz a Filemom: "Sim, irmão, eu me alegro em você, no Senhor". – Agostinho explica isso da seguinte forma: "Se ele tivesse dito apenas ‘eu me alegro em você’, sem acrescentar ‘no Senhor’, pareceria que havia posto em Filemom o fim de seu amor e de sua esperança; mas, como acrescentou isso, mostrou que havia posto seu fim no Senhor, e que era d’Ele que desfrutava". "Pois – como também diz Agostinho – quando você desfruta de um ser humano em Deus, é de Deus, mais do que da pessoa, que você desfruta".
Aqui se pergunta se Deus Se deleita ou Se serve de nós. Mas, como Deus nos ama – como frequentemente diz a Escritura, que “recomenda muito Seu amor por nós” –, Agostinho investiga de que modo Ele ama: se como quem se serve, ou como quem se deleita. – E ele prossegue assim: “Se Ele Se deleita em nós, então necessita de nosso bem – o que ninguém em sã consciência afirmaria. Pois o Profeta diz: 'Dos meus bens não precisas'; todo o nosso bem ou é Ele, ou vem d'Ele. Portanto, não Se deleita em nós, mas Se serve de nós. Se, porém, nem Se deleita em nós nem Se serve de nós, não compreendo como poderia nos amar. No entanto, Ele também não Se serve de nós como fazemos com outras coisas. Pois nós referimos as coisas das quais nos servimos à finalidade de nos deleitarmos na bondade de Deus; já Deus refere o uso que faz de nós à Sua própria bondade. Ele tem compaixão de nós por Sua bondade; e nós temos compaixão uns dos outros por causa da bondade d'Ele. Ele tem compaixão de nós para que desfrutemos d'Ele; nós, porém, temos compaixão uns dos outros para desfrutarmos d'Ele. Com efeito, quando temos compaixão de alguém e procuramos o seu bem, de fato visamos à sua utilidade e a consideramos; mas, ao mesmo tempo, isso também nos traz proveito, pois Deus não deixa sem recompensa a misericórdia que exercemos para com os outros. Ora, essa recompensa é a maior de todas: que desfrutemos d'Ele”. – E ainda: “Porque Ele é bom, existimos; e, na medida em que existimos, somos bons. Mas, porque também é justo, não ficamos impunes por sermos maus; e, na medida em que somos maus, nessa mesma medida somos menos. Assim, o uso que Deus faz de nós se refere não à utilidade d'Ele, mas à nossa – e unicamente à Sua bondade”.
Se as virtudes devem ser desfrutadas ou usadas. Aqui se deve considerar se é para se desfrutar ou se servir das virtudes. – A alguns parece que se deve apenas se servir delas, e não desfrutá-las. E confirmam isso com a autoridade de Agostinho, que, como já foi citado, diz “que não se deve desfrutar senão da Trindade, isto é, do Sumo e Imutável Bem”. – Dizem ainda que as virtudes não devem ser amadas por si mesmas, mas por causa da bem-aventurança eterna; aquilo, porém, que deve ser desfrutado, deve ser amado por si mesmo. – E que as virtudes não devem ser amadas por si mesmas, mas somente por causa da bem-aventurança, provam com a autoridade de Agostinho, que no livro 13 de A Trindade, contra certos autores, afirma: “Talvez essas virtudes, que amamos somente por causa da bem-aventurança, ousem nos persuadir a ponto de não amarmos mais essa própria bem-aventurança; e, se o fazem, também deixamos de amá-las, pois deixamos de amar aquilo por causa do qual somente as amávamos”. Eis que, com essas palavras, Agostinho parece mostrar que as virtudes não devem ser amadas por si mesmas, mas unicamente por causa da bem-aventurança. Se é assim, então não devem ser desfrutadas.
Outros, no entanto, pensam o contrário: que as virtudes devem ser desfrutadas, pois devem ser buscadas e amadas por si mesmas. E confirmam isso com a autoridade de Ambrósio, que, comentando aquele trecho da Epístola aos Gálatas: “Mas o fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência etc.”, diz: “Essas não são chamadas obras, mas frutos, porque devem ser buscadas por si mesmas”. Ora, se devem ser buscadas por si mesmas, então também devem ser amadas por si mesmas.
Nós, querendo resolver esse aparente conflito entre autoridades, dizemos que as virtudes devem ser buscadas e amadas por si mesmas – e ainda assim por causa da bem-aventurança. Devem ser amadas por si mesmas, pois proporcionam aos que as possuem uma alegria sincera e santa, e nelas se gera um júbilo espiritual. Contudo, não se deve parar aí, mas seguir adiante. Que o passo do amor não se detenha aí, nem que esse seja o seu fim, mas que tudo isso se refira ao Sumo Bem, ao qual unicamente se deve aderir, pois somente Ele deve ser amado por si mesmo, e fora d'Ele nada se deve buscar – pois Ele é o fim supremo. – Por isso Agostinho diz que amamos as virtudes por causa da bem-aventurança, não que não as amemos por si mesmas, mas porque esse mesmo amor que temos por elas deve ser referido àquele Sumo Bem ao qual unicamente devemos aderir, e no qual devemos permanecer e colocar o fim da nossa alegria. Por isso, não se deve desfrutar das virtudes.
Mas alguém poderá dizer: “Desfrutar é aderir a algo com amor por si mesmo”, como já foi dito; se, então, as virtudes devem ser amadas por si mesmas, também devem ser desfrutadas. – A isso respondemos: Nessa definição, ao se dizer ‘por si mesma’, deve-se entender ‘somente por si mesma’, ou seja, que algo é amado exclusivamente por si, sem que seja referido a outro fim, mas que ali se coloque o fim – como Agostinho mostra ao dizer: “Se você aderir e permanecer, colocando ali o fim da sua alegria, então será verdadeiramente e propriamente dito que desfruta; o que só deve ser feito na Trindade, isto é, no Sumo e Imutável Bem”. – Portanto, deve-se usar as virtudes e, por meio delas, desfrutar do Sumo Bem. O mesmo se diz da boa vontade; por isso Agostinho, no livro 10 de A Trindade, afirma: “A vontade é pela qual desfrutamos”. Assim também desfrutamos por meio das virtudes, não delas – a não ser que alguma virtude seja Deus, como a caridade, sobre a qual será tratado depois.
Epílogo. “De tudo o que foi dito, desde que tratamos das coisas em particular, o resumo é este”: há algumas coisas que devem ser desfrutadas, outras das quais devemos nos servir, e outras que desfrutam e se servem; e, entre aquelas das quais devemos nos servir, há algumas por meio das quais desfrutamos, como as virtudes e potências da alma, que são bens naturais. Sobre todas essas coisas, antes de tratarmos dos sinais, devemos nos ocupar; e primeiro das coisas que devem ser desfrutadas, isto é, da santa e indivisível Trindade.
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Pedro Lombardo, Sentenças.